É
comum dizer que um indivíduo é culto porque fala vários idiomas. Há quem
Unidade afirme que a cultura de um povo é mais sofisticada e complexa que a de
outro. Esse tipo de avaliação, baseada no senso comum, comporta elementos
ideológicos. Afinal, o que significam “cultura” e “ideologia”, termos tão
usados em nosso cotidiano e nas ciências humanas?
Capítulo 18 - Dois conceitos e suas
definições
Cultura
e ideologia são conceitos muitos amplos das ciências sociais; têm significados
e usos diferentes, dependendo do autor.
18.1. Os significados de cultura no
cotidiano
O
francês Félix Guattari (1930-1992) reuniu o significado de cultura em três
grupos:
·
Cultura-valor
- aparece na ideia de “cultivar o espírito”. Define um julgamento de valor
sobre quem tem ou não cultura.
·
Cultura-alma
coletiva - sinônimo de “civilização”. Todas as pessoas, grupos e
povos têm cultura e identidade cultural.
·
Cultura-mercadoria
- é a “cultura de massa”. Compreende bens ou equipamentos culturais (como
cinemas, bibliotecas e aqueles que trabalham nesses estabelecimentos), além dos
conteúdos teóricos e ideológicos de produtos (como filmes, discos e livros) que
estão disponíveis no mercado.
18.2. Cultura segundo a Antropologia
Para
o antropólogo inglês Edward B. Tylor, cultura é o conjunto de conhecimentos,
crenças, arte, moral, direito, costumes e hábitos de uma sociedade. Trata-se de
uma visão universalista. O alemão Franz Boas demonstrou que as diferenças entre
grupos e sociedades humanas eram culturais, e não biológicas. A visão dele era
particularista.
Para
o inglês Bronislaw Malinovsky, as culturas seriam sistemas funcionais e
equilibrados, formados por elementos interdependentes. Sendo interdependentes, esses
elementos não poderiam ser examinados isoladamente.
As estadunidenses Ruth
Benedict e Margareth Mead procuraram investigar as relações entre cultura e personalidade.
Ruth
Benedict desenvolveu o conceito de padrão cultural e identificou dois tipos
culturais extremos:
·
Apolínico - representado por indivíduos
conformistas, tranquilos, solidários, respeitadores e comedidos;
·
Dionisíaco - reúne indivíduos ambiciosos,
agressivos e individualistas.
Margareth Mead investigou o modo como
os indivíduos recebiam os elementos de sua cultura e como isso formava sua
personalidade. Com base em seus estudos, a antropóloga concluiu que a diferença
das personalidades não está vinculada a características biológicas, como o sexo,
mas à maneira como em cada sociedade a cultura define a educação das crianças.
Para o belga Claude Lévi-Strauss
(1908-2009), a cultura é um conjunto de sistemas simbólicos, entre os quais se
incluem a linguagem, as regras matrimoniais, a arte, a ciência, a religião e as
normas econômicas. Lévi-Strauss analisou o que era comum e constante em todas
as sociedades – as regras universais e os elementos indispensáveis para a vida
social. Demonstrou que os elementos essenciais da maioria dos mitos se encontravam
em todas as sociedades ditas primitivas.
18.3. Convivência com a diferença: o etnocentrismo
Os seres humanos tendem a tomar seu
grupo ou sociedade como medida para avaliar as demais. Cada grupo ou sociedade
considera-se superior e olha com desprezo os outros, tidos como estranhos ou
estrangeiros. Na Antiguidade, os romanos chamavam de bárbaros os que não eram
de sua cultura. Para os europeus do Renascimento, os povos da América eram selvagens.
O etnocentrismo,
termo utilizado para designar essa tendência, gera intolerância e preconceito –
cultural, religioso, étnico e político. Em nossos dias ele se manifesta, por
exemplo, na ideologia racista da supremacia do branco sobre o negro ou de uma
etnia sobre as outras. Manifesta-se, também, na ideia de que a cultura ocidental
é superior, e os povos de outras culturas devem assumi-la, modificando suas
crenças, normas e valores.
18.4. Trocas culturais e culturas híbridas
O pensador argentino Néstor García
Canclini observou que, até o século XIX, as relações culturais ocorriam entre
grupos próximos, familiares e vizinhos, com poucos contatos externos. No início
do século XX, a possibilidade de trocas culturais aumentou com o
desenvolvimento dos transportes e dos meios de comunicação.
Hoje, as tecnologias de comunicação
permitem que as trocas culturais sejam feitas em tal quantidade que não se sabe
mais a origem delas. Culturas locais se mesclam a expressões culturais,
principalmente dos Estados Unidos e de alguns países europeus, formando uma
imensa cultura mundial. As expressões de grupos ou de regiões mundo
globalizado, os produtos culturais circulam sem fronteiras, coexistem com essas
culturas híbridas.
Para o sociólogo holandês Joost Smiers,
é importante preservar as formas particulares, grupais, regionais ou nacionais
para que se alcance uma democracia cultural de fato. Para ele, o obstáculo a
vencer é a dominação cultural.
18.5. Cultura erudita e cultura popular
A separação entre cultura popular e cultura
erudita está relacionada à divisão da sociedade em classes. De acordo com
essa classificação, há uma cultura dos segmentos populares e outra identificada
com as elites.
A cultura
erudita abrangeria expressões artísticas como a música clássica de padrão
europeu, as artes plásticas, o teatro e a literatura de cunho universal. Como
qualquer mercadoria, alguns desses produtos culturais podem ser comprados e até
deixados de herança como bens físicos.
A cultura
popular encontra expressão nos mitos e contos, na dança, na música e no
artesanato. Inclui expressões surgidas nos meios urbano e rural. Demonstra
haver constante criação e recriação no universo cultural de base popular.
A palavra cultura vem do latim e
designa “o ato de cultivar a terra”. Está, assim, vinculada ao ato de trabalhar,
a uma ação determinada. Nesses termos, todos têm acesso à cultura, pois todos
podem trabalhar. Se alguém compra um livro, um disco ou um quadro, vai ao
teatro ou ao cinema, adquire, mas não produz cultura. Isso caracteriza o
consumo de uma mercadoria como qualquer outra. Não ter acesso a esses bens, não
significa, portanto, não ter cultura.
Para o pensador brasileiro Alfredo
Bosi, a cultura é alguma coisa que se faz, e não apenas um produto que se
adquire. Quando afirmamos que ter cultura significa ser superior e não ter
cultura significa ser inferior, utilizamos a condição de posse de cultura como
elemento de diferenciação social e imposição de uma superioridade que não
existe. Isso é ideologia.
18.6. A ideologia, suas origens e perspectivas
O conceito de ideologia é moderno. Antes
da Idade Moderna, a realidade era explicada pelos mitos ou pelo pensamento
religioso. O termo ideologia foi inicialmente utilizado pelo francês Destutt
deTracy (1754-1836) como “ciência da gênese das ideias”. Em 1822, a palavra foi
utilizada por Napoleão Bonaparte com o sentido Francis Bacon. A publicação de
1620 incluía estudo que expressou umas das primeiras de “ideia falsa” ou
“ilusão”.
Augusto Comte retomou o sentido de
ideologia usado por Tracy, acrescentando outro – o de conjunto de ideias de
determinada época.
Para Karl Marx, a ideologia é um
sistema elaborado de representações e de ideias que correspondem a formas de
consciência que os homens têm em determinada época. De acordo com ele, as
ideias dominantes em qualquer época são sempre as de quem domina a vida material
e, portanto, a vida intelectual.
Segundo Émile Durkheim, o cientista
deve deixar de lado as noções pré-científicas e as ideias subjetivas. São essas
noções e ideias que ele entende por ideologia, ou seja, o contrário de ciência.
De acordo com Karl Mannheim , as
ideologias são sempre conservadoras, pois expressam o pensamento das classes
dominantes, que visam à estabilização da ordem. Em oposição, utopia é o
pensamento das classes oprimidas, que buscam a transformação social.
18.7. A ideologia no cotidiano
Nas relações entre as pessoas, uma
série de elementos ideológicos se manifestam por meio de ações, palavras e
sentimentos. No capitalismo, a ideologia se expressa, por exemplo, no discurso
que procura ocultar as contradições existentes na sociedade. Baseado em
categorias genéricas, esse discurso transmite uma ideia de uniformidade.
A crença na verdade inquestionável do
conhecimento científico talvez seja a maior de todas as expressões ideológicas
presentes em nosso cotidiano. Da buscado sentido da vida às possibilidades de
sucesso, a ciência seria a grande solução para todos os problemas, males e
enigmas. No entanto, o pensamento científico se distancia da ideia de verdade
absoluta. Ele é histórico e tem validade temporária, sendo a dúvida seu maior
valor.