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O processo de desumanização e coisificação do outro


Introduziremos aqui o tema da não cidadania. Para isso, refletiremos sobre situações nas quais ocorrem práticas sistemáticas de violação de direitos básicos, que levam ao processo de desumanização e coisificação do outro.

Compreender os mecanismos que sustentam esse processo será de fundamental importância. Por isso, mais uma vez, recorremos ao recurso metodológico do estranhamento e da reflexão crítica sobre fenômenos sociais com nos quais nos defrontamos na realidade brasileira.

O objetivo é iniciar a reflexão sobre o tema central: o processo de desumanização e coisificação do outro, que faz com que o ser humano seja anulado e desconsiderado como tal. Para isso, a problemática que abordaremos inicialmente é a escravidão contemporânea.

Quando terminou oficialmente a escravidão no Brasil? A escravidão foi abolida em 1888, quando a Princesa Isabel promulgou a Lei Áurea. De fato, oficialmente, a escravidão no Brasil foi abolida nessa data. Porém, ela ainda persiste no século XXI, não apenas em alguns pontos do nosso país, mas em diversos outros lugares ao redor do mundo. Como isso acontece?

Aliás, ainda existe escravidão no Brasil, mesmo após a promulgação da Lei Áurea? Há inúmeros casos de trabalho análoga ao trabalho escravo no Brasil e no mundo hoje.

Conforme dados do Ministério do Trabalho e Emprego, de 1995 até 2012, 44.415 pessoas foram resgatadas em ações de grupos móveis de fiscalização, integrados por auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho e policiais federais, ações essas com vistas a verificar possíveis denúncias de prática de trabalho análoga a de escravo. No total, foram 3.441 estabelecimentos inspecionados em 1.393 operações[1].
Segundo o estudo Trabalho escravo no Brasil do século XXI[2], tais ações fiscais demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários desinformados, escondidos em fazendas atrasadas e arcaicas. Pelo contrário, são latifundiários, muitos produzindo com alta tecnologia para o mercado consumidor interno ou para o mercado internacional.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)

O texto a seguir que comenta a escravidão contemporânea no Brasil:

Pedro, de 13 anos de idade, perdeu a conta das vezes em que passou frio, ensopado pelas trovoadas amazônicas, debaixo da tenda de lona amarela que servia como casa durante os dias de semana. Nem bem amanhecia, ele engolia café preto engrossado com farinha de mandioca, abraçava a motosserra de 14 quilos e começava a transformar a floresta amazônica em cerca para o gado do patrão. Foi libertado em uma ação do grupo móvel no dia 1º de maio de 2003 em uma fazenda, a oeste do município de Marabá, Sudeste do Pará.
(SAKAMOTO, Leonardo (Coord.). Trabalho escravo no Brasil do século XXI. Brasília: Organização Internacional do Trabalho,2007. p. 27-28. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2013).

Questionamos: o que há de errado na situação vivida por Pedro? O que você acha que a informação “foi libertado” significa?

É importante observar que, segundo a legislação trabalhista brasileira, Pedro, por ser menor de idade, não poderia trabalhar. Além disso, a função que ele exercia é considerada insalubre e de alto risco para a sua idade. O desmatamento da Floresta Amazônica para transformá-la em área de criação de gado hoje tem sérias restrições ambientais.

As condições de alojamento e alimentação também não eram adequadas para o exercício das suas funções. Quanto à segunda questão, é importante que entenda que dizer que Pedro foi libertado significa que, de alguma forma, o menino encontrava-se privado da condição de liberdade, ou seja, não podia, por alguma razão, deixar a fazenda onde trabalhava.

A escravidão contemporânea

Existem várias formas de escravidão na contemporaneidade. Discutiremos aqui a exploração do trabalho escravo rural. Para entender como ela funciona, leia o texto a seguir:

A assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, representou o fim do direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra, acabando com a possibilidade de possuir legalmente um escravo no Brasil. No entanto, persistiram situações que mantêm o trabalhador sem possibilidade de se desligar de seus patrões. Há fazendeiros que, para realizar derrubadas de matas nativas para formação de pastos, produzir carvão para a indústria siderúrgica, preparar o solo para plantio de sementes, algodão e soja, entre outras atividades agropecuárias, contratam mão de obra utilizando os contratadores de empreitada, os chamados “gatos”. Eles aliciam os trabalhadores, servindo de fachada para que os fazendeiros não sejam responsabilizados pelo crime.
Esses gatos recrutam pessoas em regiões distantes do local da prestação de serviços ou em pensões localizadas nas cidades próximas. Na primeira abordagem, mostram-se agradáveis, portadores de boas oportunidades de trabalho. Oferecem serviço em fazendas, com garantia de salário, de alojamento e comida. Para seduzir o trabalhador, oferecem “adiantamentos” para a família e garantia de transporte gratuito até o local do trabalho.
O transporte é realizado por ônibus em péssimas condições de conservação ou por caminhões improvisados sem qualquer segurança. Ao chegarem ao local do serviço, são surpreendidos com situações completamente diferentes das prometidas. Para começar, o gato lhes informa que já estão devendo. O adiantamento, o transporte e as despesas com alimentação na viagem já foram anotados em um “caderno” de dívidas que ficará de posse do gato. Além disso, o trabalhador percebe que o custo de todos os instrumentos que precisar para o trabalho – foices, facões, motosserras, entre outros – também será anotado no caderno de dívidas, bem como botas, luvas, chapéus e roupas. Finalmente, despesas com os improvisados alojamentos e com a precária alimentação serão anotados, tudo a preço muito acima dos praticados no comércio.
Convém lembrar que as fazendas estão distantes dos locais de comércio mais próximos, sendo impossível ao trabalhador não se submeter totalmente a esse sistema de “barracão”, imposto pelo gato a mando do fazendeiro ou diretamente pelo fazendeiro.
Se o trabalhador pensar em ir embora, será impedido sob a alegação de que está endividado e de que não poderá sair enquanto não pagar o que deve. Muitas vezes, aqueles que reclamam das condições ou tentam fugir são vítimas de surras. No limite, podem perder a vida.
(SAKAMOTO, Leonardo (Coord.). Trabalho escravo no Brasil do século XXI. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2007. p. 21-22. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2013)

Como forma de prosseguir na discussão, questionamos: O que você entendeu do texto? Por que a situação descrita no texto é entendida como escravidão?

A escravidão vem sendo definida e qualificada por organismos internacionais desde o século passado, por meio de uma série de convenções e tratados que visam regulamentar[3], coibir e abolir formas de exploração do trabalho que violam direitos constituídos ou que vieram a ser consideradas “similares à condição de escravidão”.

E o que vem a ser isso? Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a escravidão é definida como o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos de direito de propriedade[4].

Já os atos considerados similares à escravização de seres humanos abrangem:

Servidão por dívidas, ou seja, quando alguém é obrigado a oferecer seus serviços ou de terceiros sobre os quais tenha autoridade, sem que haja definição sobre a duração dos serviços, tampouco o seu valor ou tipo (ausência de contrato).
Servidão por lei, costume ou acordo que obrigue uma pessoa a trabalhar sem poder mudar sua condição.
Práticas em que mulheres, crianças ou adolescentes são cedidas ou vendidas em casamento, por morte do marido ou a terceiros, para fins de exploração ou não.
(Fonte: Convenção Suplementar sobre abolição da escravatura, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravatura. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2013)

Atualmente, o repúdio à prática da escravidão não é apenas um movimento em defesa da liberdade, mas uma proibição que se estende a todos os âmbitos do direito internacional e dos Direitos Humanos. Contudo, práticas que atentam contra esses direitos ainda são comuns no cenário nacional, especialmente nos setores de atividades agropecuárias, indústria têxtil e construção civil, em todo o território nacional[5].

Em 2003, o Congresso Nacional aprovou penas mais duras visando coibir o trabalho escravo. A Lei nº 10.803, de 11/12/2003, alterou o artigo nº 149 do Código Penal e estabeleceu com maior precisão os elementos com base nos quais são identificadas as formas em que as vítimas são reduzidas à condição de escravidão.

A lei prescreveu também penas mais rigorosas para os infratores. E quais são as características da escravidão contemporânea?

·         escravidão contemporânea não se reduz à condição de propriedade ou perda da liberdade, mas envolve, principalmente, a questão da exploração do trabalho.
·         Nesse sentido, uma condição essencial para o exercício da cidadania são as garantias fundamentais da dignidade humana.
·         Por essa razão, são considerados formas análogas à escravidão o trabalho forçado e o trabalho degradante.

O que se entende por “trabalho forçado” e “trabalho degradante”?
Leia as definições a seguir:

Trabalho forçado (ou obrigatório): segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), é todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente[6].
Trabalho degradante: é o trabalho em que as condições mais básicas são negadas ao trabalhador, como salário que atenda satisfatoriamente às suas necessidades de sobrevivência e de sua família; o direito a uma jornada justa, que não ofereça riscos à sua saúde ou à sua segurança e lhe permita o convívio social, sem limitações materiais quanto à alimentação, higiene e moradia.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)

A desumanização e a coisificação do outro

Como foi mencionado na etapa anterior, há diversas formas contemporâneas de exploração do trabalho que envolvem o cerceamento de liberdade e a degradação do ser humano. Esses dois fatores, além de caracterizar a condição de escravidão, estão estreitamente ligados a um processo ainda mais perverso, em que a pessoa se transforma em mercadoria comercializável, interessante somente por causa do seu valor de troca.

Nesse caso, as maiores vítimas são, sobretudo, crianças, adolescentes e mulheres, transformados em objetos de consumo. Nesta etapa, analisaremos de forma breve como a exploração sexual de crianças, adolescentes e mulheres, comercializados por meio de esquemas de tráfico internacional de seres humanos, os desumaniza e os coisifica, tornando-os objetos de transação no comércio global de armas e drogas.

De que forma a exploração sexual e o tráfico de pessoas estão relacionados?

Essas práticas estão relacionadas da seguinte maneira: há demandas em diversas regiões do mundo por mulheres, adolescentes e também crianças para serem usadas sexualmente, seja como prostitutas, seja como protagonistas de material pornográfico, alimentando, assim, redes internacionais de pedofilia. Isso propicia a existência do tráfico de pessoas. Como definir cada uma dessas práticas?

A declaração aprovada durante o 1º Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes, ocorrido em Estocolmo, em 1996, definiu a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes como toda prática que compreende o abuso sexual por adultos e a remuneração em espécie ao menino, à menina, a terceiros ou a várias outras pessoas.

Nessa situação, a criança é tratada como uma mercadoria, um objeto sexual para o prazer de um adulto, pois a relação é consumada mediante pagamento. É uma violação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, já que constitui uma forma de coerção e violência, geralmente acompanhada de trabalho forçado e de formas contemporâneas
de escravidão[7].

O tráfico de pessoas constitui o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou recolhimento de pessoas por meio de força, ameaça ou outras formas de coerção, como fraude, engano ou abuso de autoridade[8].

É importante observar que o tráfico de pessoas envolve as mesmas condições observadas no aliciamento para exploração de trabalho escravo. Nelas, o trabalhador também é submetido a condições materiais objetivas que abrangem estratégias de recrutamento, promessas de transporte e alojamento e condições subjetivas de realização, que envolvem promessas de ganhos, ocupação e condições de trabalho melhores[9]. No

Para aprofundar esse debate, leiamos o texto a seguir:

Uma pesquisa coordenada nacionalmente pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), em 2002, revelou que as pessoas aliciadas pelo tráfico de seres humanos são geralmente do sexo feminino, com idades entre 15 e 25 anos, pardas ou negras. A maioria é oriunda de classes sociais mais baixas, com pouca escolaridade, mora em bairros periféricos com carência de saneamento, transporte e outros serviços públicos, tem filhos e exerce atividades com pouca qualificação profissional, como trabalhos domésticos (arrumadeira, empregada doméstica, cozinheira) ou no ramo de serviços (auxiliar de serviços gerais, garçonete, balconista). Mal remuneradas e sem registro em carteira, muitas estabelecem uma rotina desmotivadora e desprovida de possibilidades de ascensão social, o que as torna “presas” fáceis para os aliciadores, que prometem ganhos vultosos e rápidos no exterior.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)


Questões:

Após a leitura do texto, peça que respondam às questões:
1.   Quem são as pessoas mais sujeitas ao aliciamento pelas redes de crime organizado que traficam seres humanos para a exploração sexual?
2.   Qual é o fator que mais atrai essas pessoas e as leva a se submeter aos aliciadores?
3.   A escravidão hoje é a mesma de antes da Abolição? Justifique sua resposta.



[1] PORTAL do Ministério do Trabalho e Emprego. Quadro geral das operações de fiscalização para erradicação do trabalho escravo – SIT/SRTE 1995 a 2012. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2013.
[2] 2 SAKAMOTO, Leonardo (Coord.). Trabalho escravo no Brasil do século XXI. Brasília: OrganizaçãoInternacional do Trabalho, 2007. p. 24. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2013.
[3] Por “regulamentar”, entendemos o ato de estabelecer regras, disposições e normas para a execução de leis, inclusive aquelas que restringem, proíbem e estabelecem penas para a exploração do trabalho escravo.
[4] Convenção de 1926 das Nações Unidas sobre a Escravatura. Disponível em: .Acesso em: 20 dez. 2013.
[5] No site da ONG Repórter Brasil, é possível acompanhar as mais recentes notícias relacionadas à identificação do trabalho escravo no país. Essa instituição, criada em 2001, tem se notabilizado por realizar a cobertura, a pesquisa e o levantamento das problemáticas relativas ao tema. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2013.
[6] Convenção nº 29 sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório. Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2013.
[7] LEAL, Maria L.; LEAL, Maria F. (Orgs.). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial. Pestraf: Relatório Nacional – Brasil-Brasília: Cecria, 2002. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2013.
[8] Essas disposições podem ser encontradas no Protocolo de Palermo, artigo nº 2.
[9] LEAL, Maria L.; LEAL, Maria F. (Orgs.). Op. cit., 2002.


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