quarta-feira, 16 de maio de 2018

Reprodução da violência e da desigualdade social


O objetivo aqui é analisar como condições sociais diferenciadas interferem nas relações e interações entre grupos no interior de uma sociedade, contribuindo, assim, para explicar processos de reprodução de outros fenômenos sociais.

A partir da condição de não cidadania, procuraremos estabelecer uma reflexão sobre como a cisão entre “cidadãos” e “não cidadãos” gera conflitos que, no limite, reproduzem a violência e a desigualdade social nos grandes centros urbanos.

A condição de “não cidadania” está estreitamente ligada à desumanização e à coisificação do outro, na forma da exploração do trabalho escravo e do tráfico de seres humanos.

Essa condição também contribui para explicar processos de reprodução de fenômenos sociais mais complexos, como a violência e a desigualdade social. Para isso, utilizaremos como referência alguns episódios intensamente noticiados na época de sua ocorrência.

Leia os seguintes textos:

Texto 1
A morte de sete crianças indefesas na madrugada do dia 23 de julho de 1993 chocou o país e o mundo, descortinando nossos olhares para uma dura realidade. O assassinato dos menores da Candelária ocorreu, segundo depoimento dos sobreviventes, em virtude da prisão de um homem chamado Neilton. Ele foi detido pela Polícia Militar pelo fato de carregar consigo três latas de cola durante uma passeata. Ao verem os PMs agredirem Neilton, os amigos do jovem apedrejaram um carro de polícia, quebrando-lhe os vidros. Um policial, ofendido com o ocorrido, ameaçou os menores, dizendo que voltaria ao local. Os garotos identificaram esse policial como tenente Sá. Um dia após o incidente, por volta da 0:30 hora, cerca de 50 menores que dormiam sob a marquise de um edifício na Praça Pio 10, ao lado da Igreja da Candelária, foram acordados por alguns homens que perguntavam por “um tal de Russo”. Ao identificarem o “Russo”, dispararam tiros de revólver sobre ele, matando-o. A partir daí o desespero tomou conta da cena: jovens, correndo para todos os lados, fugiam dos disparos. O saldo da ação violenta foi a morte de quatro menores, três após darem entrada no hospital Souza Aguiar. Dois foram vitimados depois de serem capturados pelos atiradores e empurrados para dentro de um carro. Receberam tiros no rosto e foram jogados nas imediações da Candelária.
(PEDROSO, Regina C. Violência e cidadania no Brasil: 500 anos de exclusão. São Paulo: Ática, 2006. p. 70-71).

Texto 2
[…] Jardim Botânico, cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 12 de junho de 2000. Ondas eletromagnéticas atravessam o éter da cidade maravilhosa para levar aos lares de milhões de brasileiros pouco mais de cinco horas de imagens ao vivo de violência urbana, comum em muitas metrópoles. As imagens revelavam que um jovem, ao tentar assaltar um ônibus, teve sua ação interrompida pela polícia e pela imprensa, que cercaram o veículo. O assalto frustrado transformou-se, de um momento para outro, em sequestro. Dois anos depois, o diretor José Padilha realizou o documentário Ônibus 174, no qual retomou o acontecimento mencionado acima para tentar compreendê-lo. Nesse processo, o cineasta apresentou o principal protagonista do evento: Sandro do Nascimento – o sequestrador. A artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, que conhecia Sandro desde os tempos em que ela desenvolvia um trabalho social com os meninos de rua da Candelária, em seu depoimento, informa que Sandro, aos seis anos de idade, presenciou o assassinato violento de sua mãe na favela do Rato Molhado. Sem ninguém para apoiá-lo – o pai desconhecido –, o menino acaba indo viver na rua, primeiro no Méier e depois na Zona Sul. Lá, afirma Yvonne, é mais fácil arranjar dinheiro com turistas. Com os laços familiares desfeitos, a criança termina por se juntar a uma gangue de meninos de rua. Sandro foi um dos meninos que sobreviveram ao massacre da Candelária. [...]
(RAMOS, Paulo R. A imagem, o som e a fúria: a representação da violência no documentário brasileiro. Estudos Avançados, v. 21, Acesso em: 20 dez. 2013, n. 61, 2007. p. 228. Disponível em: ).

Texto 3
A polícia conseguiu prender o sequestrador do ônibus, Sandro do Nascimento. Este, mesmo já preso, foi friamente assassinado pelos policiais a caminho da delegacia. Essa ação chocou o país, já que a morte do sequestrador não se deu em meio a uma troca de tiros, mas enquanto o rapaz estava preso e algemado, ou seja, inofensivo.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola).


Há alguma relação entre os acontecimentos descritos nos textos? Se há, qual? É possível perceber cada um dos episódios violentos mencionados nos textos e colocá-los em ordem cronológica? É possível identificar relações entre eles? Que outros fatores poderiam explicar os fatos descritos nos textos?

Não cidadania e processos de reprodução da violência e da desigualdade social

As tentativas de explicar a relação entre a violência policial, o massacre dos meninos da Candelária e o sequestro do ônibus 174, pode ser superficial. Portanto, vamos enumerar as hipóteses referentes à questão.

É importante reconstruir as condições sociais nas quais Sandro vivia quando passou a morar com sua mãe na favela do Rato Molhado e, posteriormente, quando morava na rua convivendo com seus companheiros da Candelária. Que tipo de vida esses meninos de rua levavam? De que forma estavam expostos à violência?

Essas perguntas poderão ser respondidas de diversas maneiras. Uma delas é a questão da vulnerabilidade social associada à condição de “não cidadania”. Para esclarecer sobre o conceito de vulnerabilidade social, leia o trecho a seguir:

Por vulnerabilidade social podemos entender o resultado negativo da relação entre a disponibilidade de recursos (materiais ou simbólicos) dos indivíduos e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que proveem do Estado, do mercado e da sociedade civil.
(ABRAMOVAY, Miriam et al. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para políticas públicas. Brasília: Unesco; Bid, 2002).


Em outras palavras, as pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social dispõem de poucos recursos materiais (moradia adequada, renda, acesso a serviços públicos como saúde, energia, segurança) e simbólicos (informação, educação, conhecimento, rede de relações sociais) que lhes permitam participar social, econômica e culturalmente da sociedade, do mercado e da proteção do Estado. No limite, quanto maior a vulnerabilidade, maiores são as chances de exclusão social.

Vejamos um exemplo: uma pessoa que não é alfabetizada não tem acesso às informações necessárias para o pleno exercício da cidadania; tem dificuldade ou mesmo incapacidade de resolver problemas cotidianos, como obtenção de documentos, saber quais são os órgãos competentes para tratar cada questão ou quais são os serviços oferecidos pela rede de proteção social do seu município, incluindo as entidades não governamentais. Além disso, tem poucas chances de obter uma colocação mais bem remunerada no mercado de trabalho, conseguir um emprego formal e gerar renda suficiente para subsistir de forma digna.

A situação de vulnerabilidade social está necessariamente ligada à violência e à criminalidade? Estar em situação de vulnerabilidade social não faz necessariamente com que as pessoas se envolvam com a violência ou atos criminosos. Existe uma visão de senso comum que tende a associar vulnerabilidade e exclusão social à delinquência. Se isso fosse verdade, os índices de criminalidade observados na população mais pobre seriam infinitamente maiores, quando apenas uma pequena parcela dessa população efetivamente está envolvida em delitos. Por que isso acontece?

Os fatores que atuam como geradores e reprodutores da violência são anteriores às condições materiais e simbólicas que entendemos por “vulnerabilidade social”. Eles só podem ser compreendidos no interior de relações sociais históricas entre grupos que ocupavam posições hierárquicas distintas, marcadas pelo conflito e pela dominação. Nesse sentido, a situação de vulnerabilidade social também significa o processo sistemático de exclusão de determinadas pessoas em função da sua origem social, local de moradia, tipo físico, cor, postura, modo de vestir e de falar, entre outros.

Na época do Império, os indivíduos que mais causavam apreensão por parte do Estado e da classe social mais favorecida eram os desempregados sem moradia (chamados de vadios), os capoeiras (que praticavam a capoeira ou outros rituais de origem africana), os escravos e os estrangeiros. Qualquer uma dessas pessoas que perturbasse a ordem poderia ser presa e, no caso dos escravos, ser açoitada ou ter a pena de morte decretada.

Com o fim da escravidão, uma nova ideologia do trabalho passou a vigorar na sociedade brasileira. Quem estava desocupado passou a ser malvisto. A ociosidade, encarada como “vagabundagem”, passou a ser considerada um “crime” e, como tal, passível de punição. A população mais pobre, especialmente os ex-escravos, que não conseguiram se integrar ao mercado de trabalho emergente após a abolição, tornou-se alvo preferencial do controle social do Estado.

A segregação de todo um conjunto de pessoas segundo determinadas características socioeconômicas situa-as no interior de certos estereótipos sociais, tais como desocupado/vagabundo, vagabundo/perigoso, o que contribui para associar o pobre a um elemento perigoso para a sociedade.

Esse mundo da desordem, construído no imaginário da elite do final do século XIX, nada mais era do que o oposto do mundo do trabalho. Representava, dessa forma, o elemento fundamental para a reprodução das classes sociais. A existência do crime, da vagabundagem e da ociosidade justificava o discurso de exclusão e perseguição policial às camadas populares pobres e despossuídas.
(PEDROSO, Regina C. Violência e cidadania no Brasil: 500 anos de exclusão. São Paulo: Ática, 2006. p. 25)

Porém, a exclusão social do outro pode se dar antes mesmo do enquadramento legal, ou seja, antes que o delito seja cometido. As formas de exclusão podem ser mais ou menos explícitas e mais ou menos violentas, dependendo do contexto e dos atores sociais envolvidos. Temos como exemplo os casos dos moradores de rua, dos moradores de bairros periféricos ou de favelas, concebidas como “focos privilegiados de criminalidade”, em que todos são suspeitos até que se prove o contrário. Embora essa associação seja feita tanto em relação aos homens como em relação às mulheres, ela é particularmente contundente no caso do jovem do sexo masculino, morador da periferia, principalmente se for negro ou pardo[1].

O que motivou o assassinato dos menores na Candelária e qual foi o desfecho do sequestro do ônibus 174? No desfecho desse caso, uma das reféns foi morta e o sequestrador morreu sufocado pelos policiais a caminho da delegacia.

As razões para a violência policial, embora bastante complexas, podem ser entendidas ao se analisar as relações sociais não apenas do ponto de vista das instituições que organizam as forças de segurança pública, mas também considerando a forma como os próprios cidadãos, ao interagirem com elas, exprimem suas expectativas, representações e concepções acerca do que é segurança, policiamento e cidadania. A violência policial pode ser compreendida por meio das concepções de segurança pública hoje vigentes e do modo como o “outro” (seja ele o criminoso ou apenas provável suspeito) é visto pelos cidadãos e por aqueles que detêm o “direito” ao uso legítimo da força.

Para prosseguir na discussão, leia os seguintes trechos:

Texto 1
Do ponto de vista sociológico, a identidade social dos indivíduos não é determinada, imutável. Ela é sempre (re)constituída, de forma mais ou menos certa e duradoura conforme nos relacionamos com os outros. A atribuição de identidade por instituições e agentes que estão em interação direta com os indivíduos – no caso estudado nesta Situação de Aprendizagem, a identidade de “criminoso” ou “suspeito” – só pode ser analisada levando-se em conta os sistemas de ação nos quais o indivíduo está imerso e também o fato de que tal atribuição de identidade resulta tanto das relações de força entre todos os sujeitos, grupos e instituições envolvidos como da legitimidade das categorias utilizadas.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)

Texto 2
A “formalização” legítima dessas categorias constitui um elemento essencial desse processo que, uma vez concluído, se impõe coletivamente, ao menos por um tempo, aos atores implicados. O processo leva a uma forma variável de rotulagem, produzindo o que [o sociólogo Erving] Goffman denomina de identidades sociais “virtuais” dos indivíduos assim definidos.
(DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 139)

A partir do que foi exposto nos textos, pode-se dizer que a violência exercida pelas instituições de segurança pública sobre determinados segmentos da população é um desenvolvimento de processos mais amplos de identificação e atribuição de categorias e classificações a determinados grupos. Esses processos são anteriores ao uso legítimo da força na coibição da criminalidade, e não necessariamente seguem critérios técnicos na definição da infração.

Para os agentes de segurança pública, os outros a serem reprimidos são definidos por meio da dinâmica das condições sociais que propiciam o aumento e a disseminação das principais formas de violência e criminalidade. Geralmente, segundo esses agentes, a violência e a criminalidade são resultado da combinação entre características sociodemográficas e da ocupação do espaço urbano.

Porém, os fatores geradores e reprodutores da violência e da criminalidade não constituem unicamente o resultado de determinantes socioeconômicas e espaciais características apenas do modo como as metrópoles vêm se desenvolvendo historicamente e de como as populações vieram a se distribuir em condições desiguais nas diversas localidades. Na realidade, as raízes da violência são muito mais complexas e derivam dos conflitos inerentes aos processos de interação social entre membros de um mesmo grupo ou entre membros de grupos sociais diferentes.

Do ponto de vista da análise das interações sociais, os mecanismos que explicam o conflito só podem ser compreendidos no interior dos sistemas de ação nos quais ocorrem as negociações identitárias entre indivíduos, nomeadamente a atribuição de “identidades genéricas que permitem aos outros classificar alguém como membro de um grupo, de uma categoria, de uma classe”[2]. Tais atos de atribuição, entretanto, não correspondem necessariamente às “identidades para si” ou às identidades singulares que os próprios indivíduos se atribuem, gerando um “desacordo” entre a identidade social “virtual” conferida a uma pessoa e a identidade social “real” que ela mesma se atribui.

Uma das resultantes mais importantes desse processo é a “rotulagem” sistemática de determinados grupos sociais segundo “esquemas de tipificação”[3] em torno de um número limitado de características socialmente significativas que compõem uma imagem fluida do “elemento suspeito” ou “subcidadão”, principal alvo das ações e políticas de segurança pública.

O que está em debate não são apenas as ações dos agentes de segurança e das instituições detentoras do “direito” de uso legítimo da força sobre a população, mas o pressuposto subjacente a essa dinâmica de interações sociais: a concepção de cidadania.

Há uma ampla literatura sobre o tema no Brasil que reflete acerca da coexistência de “cidadãos” e “não cidadãos” ocupando diferentes posições na sociedade e, consequentemente, não dispondo dos mesmos direitos.

Como vimos, a situação de não cidadania corresponde à não participação mínima no conjunto dos direitos instituídos e legitimados[4]. Uma das formas mais contundentes de manifestação da situação de “não cidadania” é a separação entre infratores ou “criminosos” ou pessoas sob “fundada suspeita” e os que são considerados cidadãos legítimos.

Questões:
1.   Explique como ocorre a rotulagem.
2.   Desenvolva um texto dissertativo com base em toda essa discussão e no texto a seguir sobre não cidadania

A situação de não cidadania não gera violência somente no que diz respeito a um delito ou à suspeita de um delito, mas também contribui para a reprodução da violência, a partir do momento em que as pessoas nessa situação não têm o acesso aos recursos básicos para a sobrevivência e o bem-estar garantidos pelo Estado. As formas de violência são muito mais sutis e têm suas origens no modo como os diferentes grupos sociais interagem e atribuem uns aos outros categorias mutuamente excludentes de “cidadãos” e “não cidadãos”.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)

3.   Explique o que significa “não cidadania”, fundamentando, com exemplos, de que forma ela se manifesta na sociedade brasileira. Os exemplos podem ser apresentados com base em estudos de caso, dados estatísticos, resultados de outras pesquisas e informações obtidas em livros, enciclopédias ou por meio da internet.


[1] Segundo Guimarães (GUIMARÃES, Antonio S. Preconceito e discriminação. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2004), o que o faz ser confundido com um assaltante é o pressuposto, implicitamente aceito na sociedade brasileira, de que a maioria dos que agem contra a lei é de negros. A cor torna-se signo de origem social, isto é, de um status atribuído ao negro que o torna, em princípio, suspeito.
[2] DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 137.
[3] BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1999
[4] CORRÊA, Rosália S. S. Discutindo cidadania com policiais militares da Paraíba. Revista Brasileira de Segurança Pública, 2007. Ano 1, n. 2, p. 40-49.

Como explicar e entender a “liberdade de escolha” no mundo em que vivemos?

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