Nosso objetivo
aqui é estabelecer uma reflexão sobre o papel transformador da esperança e do
sonho e da importância da utopia como forma de resgate da própria condição
humana, perdida no processo de coisificação.
Para tanto,
urge o despertamento para a questão do sonho e da esperança, de tal forma que
possam refletir sobre seus próprios sonhos, esperanças e possíveis utopias.
Apresentaremos
também fragmentos da trajetória de três líderes atuantes no século XX que, por
meio da utopia de uma sociedade mais justa, também sonharam e alimentaram a
esperança, mas procuraram, por meio de diferentes formas de ação política, transformar
a vida de pessoas que não conseguiam viver plenamente não só a cidadania, como
também a condição humana. São eles: Mahatma Gandhi, Nelson Mandela e Martin
Luther King.
Infelizmente,
não é possível discutir e debater de forma aprofundada as trajetórias desses
três líderes que foram tão importantes no século XX. Dessa maneira, optou-se por
apresentar pontos significativos da trajetória de cada um e a utopia que marcou
suas vidas. Outros homens e mulheres poderiam ter sido escolhidos para essa
discussão, mas optou-se por esses três personagens que, incontestavelmente,
sonharam e transformaram sua esperança em ação
política.
A discussão
sobre o papel da esperança e do sonho será vinculada ao papel da ação na
transformação da realidade, considerando a importância da construção de utopias
e as diferentes formas de lutar por elas.
A letra da
música Apesar de você, de Chico Buarque, procura clarificar o sentimento
do desejo de justiça e de cidadania em épocas de opressão, como a vivida na
época da composição dessa letra: A Ditadura Militar no Brasil.
Apesar de
você
Chico Buarque
Hoje você é
quem manda
Falou, tá
falado
Não tem
discussão, não.
A minha
gente hoje anda
Falando de
lado e olhando pro chão, viu
Você que
inventou esse Estado
Inventou de
inventar
Toda
escuridão
Você que
inventou o pecado
Esqueceu-se
de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há
de ser
Outro dia.
Eu pergunto
a você
Onde vai se
esconder
Da enorme
euforia
Como vai
proibir
Quando o
galo insistir
Em cantar
Água nova
brotando
E a gente
se amando
Sem parar.
Quando
chegar o momento
Esse meu
sofrimento
Vou cobrar
com juros, juro
Todo esse
amor reprimido
Esse grito
contido
Esse samba
no escuro
Você que
inventou a tristeza
Ora, tenha
a fineza
De
desinventar
Você vai
pagar, e é dobrado
Cada
lágrima rolada
Nesse meu
penar
Apesar de
você
Amanhã há
de ser
Outro dia
Ainda pago
pra ver
O jardim
florescer
Qual você
não queria.
Você vai se
amargar
Vendo o dia
raiar
Sem lhe
pedir licença
E eu vou
morrer de rir
Que esse
dia há de vir
Antes do
que você pensa.
Apesar de
você
Apesar de
você
Amanhã há
de ser
Outro dia
Você vai
ter que ver
A manhã
renascer
E esbanjar
poesia.
Como vai se
explicar
Vendo o céu
clarear
De repente,
impunemente
Como vai
abafar
Nosso coro
a cantar
Na sua
frente
Apesar de
você
Amanhã há
de ser
Outro dia
Você vai se
dar mal
Etc. e tal.
© Marola
Edições Musicais Ltda.
Analisemos
essa canção, por meio da sua interpretação a partir dos seguintes questionamentos:
1. Quem é o “você” da música Apesar de você, de Chico Buarque? 2.
Em quais condições as pessoas da música se encontram? Trata-se de uma
situação feliz e que permite a realização pessoal delas? Por quê? 3. Quais
palavras Chico Buarque usou para mostrar o desânimo, o medo, a incerteza e o
sentimento de perda de perspectivas e de liberdade? 4. Quais palavras
ele usou para contrastar com a situação daquele momento tenso e sem esperanças
e construir a imagem de uma outra situação?
Como forma
de auxiliar a compreensão da letra, ela fala da esperança e foi escrita por Chico
Buarque no período da Ditadura Militar para criticar a situação de nosso país e
dizer que toda aquela opressão um dia, com certeza, terminaria.
A canção
expressa a esperança de que tudo seria superado e que é possível sonhar, pensar
em um futuro em que tudo viria a ser diferente. Naquele período as pessoas não
podiam estabelecer uma crítica livre da situação vigente e que era necessário o
uso de metáforas.
Chico
Buarque – e outros compositores, como Geraldo Vandré, que se posicionaram
criticamente durante o período militar – escreveu várias outras letras de
protesto e esperança. Entre as músicas da época que estabeleceram uma crítica
ao regime, podemos citar: Samba de Orly, Roda viva, Cálice,
Pra não dizer que não falei das flores e O bêbado e a equilibrista.
Esperança e
utopia
Por que
vocês acham que a esperança e o sonho são importantes para a mudança?
Destacamos como
a esperança e o sonho são necessários para que a resignação não tome conta das
pessoas. Eles servem como estímulos à ação, sedimentam-se na ação das pessoas,
não significando, portanto, uma espera passiva. Logo, a esperança é a base da superação
da realidade.
Em uma
sociedade marcada por injustiças e desigualdades, na qual as pessoas estão envolvidas
em tensa complexidade social, constrangidas pelos poderes do Estado e das
instituições, a esperança expressa o inconformismo, a insubmissão. Ela sinaliza
para os indivíduos um campo de possibilidades, no qual a criatividade social e
política dá o sentido de uma ação inovadora e insurgente para todos aqueles que
carecem de liberdade, de imaginação e de esperança.
A esperança
nos ajuda a escapar do conformismo do silêncio e da conivência, a elaborar a
resistência contra a exploração e a injustiça que produzem a desumanização e a coisificação
das pessoas.
O texto a
seguir estabelece uma reflexão poética sobre essa questão.
O hoje e seu ser permanecem latentes nos desafios
do possível e nas novas opressões derivadas da estatização da esperança e da
institucionalização das carências sociais e políticas. É na insubornável e
teimosa rebeldia dessa latência que o hoje pode ter sentido como amanhã, como
esperança e não como espera, como sociedade e mundo tecidos a cada hora do dia,
sem medo nem conformismo. O possível compreendido nas iniquidades sociais do
impossível e repetitivo, o sonho invadindo a vigília, o novo nascendo como rosa
no meio dos espinhos, sem o que a rosa não teria cor nem sentido.
(Texto de José de Souza Martins)
Qual é o
significado de “latente”? O que se pode entender por “possível”?
Se o hoje
permanece latente, significa que ele permanece não manifesto, ou seja,
como que oculto ou encoberto, mas já contendo em si as possibilidades de
superação da opressão e das carências sociais e políticas, como desafios e
rebeldias que se constituem como prenúncio do futuro.
O possível,
no texto, refere-se ao que é historicamente possível. O presente, o hoje, já contém
em si aquilo que pode ser; já contém as possibilidades do futuro, do amanhã.
Dado o cenário de contradições, o possível indica o que a sociedade pode ser,
mas não é. A sociedade não realiza o que poderia ser porque há fatores de
bloqueio dessa possibilidade, isto é, a repetição, ou seja, a reprodução das
condições sociais se sobrepõe à inovação. É importante que eles apreendam que,
mesmo nas condições mais difíceis, marcadas por todo tipo de carências, é
preciso rebelar-se contra o conformismo e a apatia, construindo sonhos e
esperanças que, ao reconhecerem as limitações do presente, trazem consigo a
possibilidade de criar um futuro negador desse presente. É nesse sentido que a
esperança permite a elaboração de utopias.
É importante
enfatizar o significado da palavra utopia. Segundo o Novo Dicionário Aurélio
da língua portuguesa (Curitiba: Positivo, 2004, p. 2028), a palavra utopia
é uma palavra do latim moderno, mas tem origem grega: u (não) + tópos
(lugar). No sentido estrito designa um não lugar, ou seja, algo que não
existe. De maneira geral, essa palavra é usada para explicar um lugar que não
existe ou uma ideia que não pode ser realizada, algo que se ligaria mais à
fantasia, e não à realidade. Não é esse o sentido do uso do termo utopia que
é proposto. Aqui, a utilização do termo baseia-se na obra Ideologia e utopia,
do sociólogo Karl Mannheim.
Karl Mannheim nasceu na Hungria em 1893, onde viveu
até 1919, quando se mudou para a Alemanha. Iniciou sua carreira neste país como
pensador político e, em 1926, começou seu trabalho como sociólogo e professor
na Universidade de Heidelberg e, mais tarde, na Universidade de Frankfurt.
Fugindo do nazismo, transferiu-se para a Inglaterra em 1933, onde foi professor
na London School of Economics. O
reconhecimento desse autor derivou do seu trabalho na área da Sociologia do
Conhecimento, entre outras teorias. Procurou também abordar em seus textos uma reflexão
sobre a razão. Faleceu em 1947. Entre suas principais obras estão Ideologia
e utopia, O homem e a sociedade e Diagnóstico de nosso tempo.
Leia o
texto reproduzido a seguir:
Para o sociólogo Karl Mannheim (1893-1947), utopia
consiste em um sistema de pensamento elaborado em determinado contexto
histórico e social, mas que se põe em desacordo com ele. Ou seja, em
determinada época, em grupos com consciência de suas carências e necessidades,
surgem ideias e valores que transcendem os limites da realidade. É em uma
situação tensa e contraditória, portanto, que surge a utopia, que consegue
romper a ordem existente e conduzir a outra ordem. Nesse sentido, a utopia
orienta a conduta dos indivíduos em direção a objetivos que visam transformar a
realidade histórica. De maneira geral, essa palavra é, muitas vezes, vista de
forma negativa, pois é associada à busca inútil por algo que nunca existiu e
nem existirá, de algo “afastado da realidade”. Mas, na obra de Mannheim, é
feito um uso positivo do termo, ou seja, a utopia como algo que pode ser
realizado.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz
escola)
Para esse
autor, a utopia não é o mero fantasiar, ou o sonho de um ideal que não pode ser
concretizado. Ele resgatou a ideia de que a utopia pode, sim, ser realizada,
desde que os indivíduos ajam de forma a abalar a ordem existente. Ou seja, o
estado de espírito utópico que transcenda a realidade deve ter a tendência de
se materializar em uma ação transformadora.
Nesse
sentido, a utopia não é mero sonhar ou fantasiar outra situação, mas está
ligada a uma ação para mudar a situação atual. A precondição para que ela
exista é a construção de sonhos, é alimentar a esperança, acreditar na utopia e
evitar a resignação ou o conformismo.
A utopia,
tal como é aqui proposta, é o oposto da resignação. Resignar-se é aceitar a realidade
tal como ela é, é conformar-se e submeter-se a ela e, dessa forma, colaborar
para que as coisas continuem a ser como são, que a sociedade não se transforme
e que a exploração e as iniquidades se reproduzam. Mas o que se pretende com
esta discussão a respeito da esperança e da utopia é acentuar a importância da
não resignação, da existência da esperança e do sonho e de buscar concretizar as
utopias.
E qual é a
importância da construção de utopias? A utopia parte de uma crítica do
presente. Não é, portanto, algo puramente fantasioso ou fruto da imaginação,
pois a sua constituição decorre de reflexões sobre a realidade. Mas isso não é
suficiente. É necessário que as pessoas a assumam como diretriz de sua
participação na luta pela recuperação dos direitos de uma cidadania plena, que
só é possível com a transformação da sociedade e com a reformulação dos comportamentos
e dos sonhos humanos.
Mas como
concretizar a utopia? Como torná-la viável? É muito importante a reflexão a respeito
disso. Os três líderes que serão discutidos na sequência orientaram-se por
utopias e conseguiram realizar parte delas. A análise da biografia desses
líderes permitirá perceber como eles se tornaram sujeitos da história,
ou seja, foram capazes de construir o próprio futuro.
Não um
futuro somente para eles, mas para a sociedade em que viviam, a partir não de
uma luta solitária, e sim da união de muitas pessoas em torno da realização da utopia.
E foi isso que Mahatma Gandhi, Nelson Mandela e Martin Luther King fizeram. Eles
não lutaram sozinhos. Na verdade, estabeleceram diferentes formas de envolver o
maior número possível de pessoas em suas lutas pela concretização de suas
utopias.
Perceba as
palavras construção e concretização. Para a transformação do
presente, é preciso construir utopias; e que, para concretizá-las, as pessoas precisam
moldar sua vida por meio da ação. Ou seja, a utopia, para ser concretizada,
necessita do engajamento, da participação ativa das pessoas. Porém, não de um
engajamento de apoio moral por meio de palavras, mas sim por meio de ações que
mudem a realidade social.
O papel
transformador da esperança e da utopia
Passamos a
apresentação dos três líderes que, com sua luta, conseguiram nos mostrar o
papel da esperança e da utopia na transformação da realidade social. Iniciando
com Gandhi, pois ele e a sua política da não violência influenciaram tanto
Mandela como Luther King.
Não
pretendemos trabalhar de forma minuciosa as trajetórias desses líderes, mas
pontuar como eles procuraram dar forma aos seus sonhos e esperanças por meio da
participação política, no sentido de concretizar suas utopias de uma sociedade
melhor.
Mahatma
Gandhi
Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em Porbandar, na
Índia, em 2 de outubro de 1869. Sua família pertencia à subcasta dos vaixás
(mercadores e agricultores). Casou-se aos 13 anos – o que era costume na Índia
– e viveu com sua esposa por mais de 60 anos, até ela falecer.
Gandhi formou-se em Direito, na Inglaterra, e
exerceu essa profissão na África do Sul durante certo período de sua vida.
Também foi na África do Sul que ele iniciou sua luta pela melhoria de vida dos
indianos que ali residiam. Na época, o país também era colônia da Grã-Bretanha,
assim como a Índia.
No final do século XIX, muitos indianos migravam para
a África do Sul a fim de obter melhores condições de vida, uma vez que a
situação de fome e miséria na Índia era ainda pior do que o preconceito que
enfrentavam ao emigrar. Na África do Sul, eram proibidos de ficar
nas ruas após as 21 horas e precisavam viver em
guetos. Também não podiam possuir terras e eram obrigados a pagar uma taxa
anual de residência pelo simples fato de serem indianos.
Um dos momentos mais marcantes na sensibilização de
Gandhi para as questões sociais ocorreu em uma viagem de trem. Ele estava na
primeira classe e foi abordado por um homem branco que se recusou a viajar no mesmo
vagão que ele, por causa de sua cor. Como havia comprado o bilhete para a
primeira classe, Gandhi achou que era seu direito ali permanecer. O homem saiu
e voltou acompanhado por oficiais que exigiram sua retirada para o vagão da
terceira classe. Como ele se negou a sair, foi empurrado para fora do trem.
Esse episódio o fez tomar consciência dos problemas
que os indianos enfrentavam na África do Sul e iniciar sua luta pela melhoria
das condições de vida da população. Uma luta que começou pela indignação com as
condições de vida dos indianos na África do Sul e continuou na Índia, tomando a
forma da utopia transformadora.
Vários livros influenciaram as ideias de Gandhi na construção
de sua utopia por uma vida melhor em sociedade, como o Bhagavad-Gita,
que mostra o diálogo entre Arjuna e Krishna a respeito do sentido da vida. Essa
obra é considerada a expressão máxima da literatura da Índia antiga. Ao lê-la,
ele foi profundamente influenciado pelo conceito de ahimsa (não
violência) que encontrou. Achava que o Bhagavad-Gita estimulava uma vida
de desprendimento material e usou-o como principal fonte de apoio espiritual na
sua luta. Acreditava que a busca por bens materiais o atrapalharia na
realização de sua utopia. Isso o influenciou de tal forma que, em 1906, com
menos de 40 anos, fez o voto de castidade que manteve por toda a sua vida.
Outras ideias que inspiraram Gandhi foram
encontradas na tradição cristã expressa no Novo Testamento, no preceito cristão
de dar a outra face, e no Sermão na Montanha. Além disso, ele foi marcado pelos
livros Até as últimas, do pensador inglês do século XIX John Ruskin, que
enfatizou que todos os tipos de trabalho deveriam ter igual valor e, acima de
tudo, que o trabalho manual deveria ser visto como digno, e Desobediência
civil, do estadunidense Henry David Thoreau, que considerava um dever de todo
cidadão resistir à injustiça do governo.
A partir disso, Gandhi começou a realizar trabalhos
manuais, como a limpeza da própria casa. Tendo isso em mente, fundou a
comunidade autossuficiente Phoenix, uma das várias comunidades que ele
instituiu ao longo de sua vida, tanto na África do Sul como na Índia. Apesar de
já ser vegetariano, restringiu sua dieta a alimentos crus e começou a fazer
jejuns. Mais tarde, os jejuns foram usados como forma de convencimento em seus
protestos não violentos.
Quando retornou à Índia, em 1915, já era conhecido
como um defensor dos Direitos Humanos que lutava contra a discriminação na
África do Sul e como um homem que acreditava na resistência não violenta.
Passou a tecer a própria roupa e desapegou-se totalmente dos bens materiais.
Na Índia, fundou outra comunidade autônoma, cujos
residentes deveriam jurar abster-se de carne, sexo e álcool. Ele pregou a resistência
à dominação, por meio da não violência e da desobediência civil, e o boicote
aos produtos britânicos. Envolveu-se em muitas causas e foi preso diversas
vezes. Na verdade, a cada vez que desobedecia a uma lei, esperava ser preso e,
com isso, mostrar a injustiça. Mas a maior de todas as causas pelas quais lutou
foi a da libertação da Índia, fato que só ocorreu em 1947, pouco antes de
seu assassinato, em 1948, por um radical hindu.
Gandhi pensava não só na libertação da Índia da
dominação inglesa, mas também era a favor de uma profunda transformação da
sociedade indiana; defendia a convivência pacífica entre hindus e muçulmanos,
os dois principais grupos religiosos da Índia, que viviam em conflito. Infelizmente,
essa parte da luta ele não conseguiu realizar, pois, junto com a independência
da Índia, ocorreu a divisão do território indiano e a criação do Paquistão. Dessa
maneira, o território indiano foi dividido em dois: de um lado a Índia,
hinduísta, e de outro o Paquistão, muçulmano.
Ele foi ainda um defensor do fim da exclusão dos dalits,
também conhecidos como intocáveis. A Índia era organizada oficialmente pelo
sistema de castas. Segundo esse complexo sistema, boa parte da vida de uma
pessoa já está traçada ao nascer, uma vez que ele determina o local de moradia,
a profissão, o casamento e, sobretudo, o lugar de cada um na sociedade. Os dalits,
ou intocáveis, eram pessoas sem castas e, por isso, estavam fadados a ser
excluídos da sociedade indiana, pois eram considerados impuros. A eles eram
destinados os piores trabalhos, como lidar com os mortos, desentupir esgotos
etc. Pouco depois da morte de Gandhi, o sistema de castas foi abolido por lei.
Entretanto, nunca deixou de existir de fato e, embora informalmente, ainda é um
forte princípio de organização da sociedade indiana.
Gandhi chamava os dalits de “filhos de Deus”
e considerava a questão da intocabilidade um grave problema do hinduísmo.
Porém, nunca foi contra o sistema de castas em si e não propunha seu fim, pois
o que ele criticava era a hierarquia que o sistema criava e que gerava a
exclusão social de milhões de pessoas no país. De qualquer maneira, sua
preocupação com essa parte da população simplesmente ignorada pelos demais foi
um importante passo na realização de sua utopia de uma sociedade melhor. Como
forma de realizar seu intento, ele chegou até a limpar latrinas de dalits,
o que chocou a sociedade indiana.
Por sua abnegação e ajuda ao próximo, bem como pela
forma exemplar como viveu, passou a ser chamado ainda em vida de Mahatma,
ou seja, “grande alma”.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz
escola)
O texto, na
verdade, é uma introdução para a questão das formas de participação política e
da utopia de Gandhi para uma sociedade melhor.
A forma
escolhida por ele para mobilizar as multidões era servir como exemplo para as
pessoas. Por isso limpou as latrinas dos dalits e passou a tecer a
própria roupa, entre outras ações.
É preciso
pensarmos a questão do engajamento e da importância da ação para a realização
das utopias. Para pensar a construção das utopias, analisemos a parte do texto
que destaca a importância da leitura de uma série de livros para a construção
de suas ideias. Enfatizamos o importante papel da leitura na construção de sua
utopia. Observemos as ações de Gandhi e as causas em que atuou que aparecem no
texto: a sua política de não violência e de desobediência.
Comece pela
não violência, também conhecida pelo nome de satyagraha, palavra que
pode ser traduzida como “a força da verdade”. Ela foi escolhida por Gandhi para
expressar a forma de protesto político que ele passou a executar. Depois de ter
contato com a obra de Thoreau, passou a chamar sua ação de “desobediência
civil”. A denominação “resistência pacífica”, que muitos usaram para
expressá-la, não era do seu agrado, pois ele acreditava que satyagraha pressupunha
uma grande vontade interior. Gandhi se considerava e procurava ser um satyagrahi,
ou seja, alguém que pratica a satyagraha, o que significa não somente
evitar a violência, mas também ser amável e desejar o bem dos opositores, pois
sua luta não era contra indivíduos, mas contra os males do sistema colonial.
Para isso,
fez, entre outras coisas, vários jejuns públicos, como forma de pressionar as autoridades,
além de escrever em jornais e editar panfletos. Para ele, o jejum não era um
tipo de chantagem, mas uma forma de fazer a outra parte perceber o que era
correto e concordar com ele. Seus jejuns mobilizaram o país em torno das questões
que ele defendia.
Também
organizou greves. A primeira ocorreu em 1919 e fez o país inteiro parar. Para Gandhi,
o povo não deveria simplesmente parar de trabalhar, mas sim rezar e jejuar
nesse dia. Depois, sem deixar de lado a satyagraha como forma de vida,
estabeleceu um novo método de resistência: a não cooperação.
Esse era um
termo criado por ele para explicar o boicote que propôs a tudo o que fosse inglês:
tribunais, empregos, escolas, roupas etc. A satyagraha se relacionava
com a sua utopia de uma Índia menos miserável. Para isso, elaborou a campanha
de não cooperação em estágios cuidadosos, na tentativa de impedir a desordem
geral. Pediu à população o boicote dos tecidos ingleses. Cada um deveria fiar a
própria roupa e, assim, a tecelagem manual voltaria a vigorar no país. Ele mesmo
passou a usar uma tanga de tecido rústico, típica das camadas mais pobres da população.
Entretanto,
nenhum gesto seu chamou tanto a atenção do mundo como a Marcha do Sal, em 1930.
Em meados do século XX, sal era um produto caro, e
muitos indianos não tinham como adquiri-lo, pois os ingleses o vendiam a preços
exorbitantes. Ao mesmo tempo, os indianos eram proibidos de produzir sal. Gandhi,
então, teve a ideia de rumar ao litoral para conseguir sal. Começou a marcha
com apenas alguns seguidores, mas logo milhares de pessoas se uniram a eles em
uma jornada de aproximadamente 24 dias até encontrar o mar. Chegando lá, Gandhi
entrou no mar, orou e, com uma panela, pegou um pouco de água. Com a evaporação
da água conseguiu produzir sal. Assim, infringiu a lei que impossibilitava os
indianos de produzir o próprio sal. Estimulados por ele, todos os pobres ao
longo da costa começaram a encher panelas de água do mar e a extrair o sal
quando a água secava. Essa marcha deu autoconfiança aos indianos para não mais
temer os ingleses, pois viram que era fácil não cooperar. Milhares de pessoas
foram presas em toda a Índia simplesmente porque produziam o próprio sal. Os
presídios ficaram lotados.
Apesar da repressão, a não violência e a não
cooperação prevaleceram, e o governo colonial britânico ficou em uma situação
desagradável perante a opinião pública mundial, uma vez que as pessoas eram
presas e sofriam violência pelo motivo banal de deixar a água secar em uma
panela como forma de obter sal. Com essa ação, Gandhi mobilizou e sensibilizou
não só a sociedade indiana, mas também a opinião pública mundial. A não
cooperação, aliada ao boicote dos produtos, teve grande efeito econômico. Só
assim o governo britânico começou a cogitar reconhecer a independência da
Índia, fato que ocorreu em 1947, quase 20 anos após a Marcha do Sal, depois de
muitas outras ações, jejuns e embates de Gandhi com o governo britânico.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz
escola)
É preciso
discutir qual a utopia de Gandhi, que sociedade ele queria superar e que sociedade
ele desejava para o futuro. Um ponto importante para a reflexão é discutir o
que a Marcha do Sal representou para os indianos em termos da possibilidade de
resgate de sua condição humana e da dignidade, ambas limitadas pela
ocupação inglesa e pelo contexto de carências sociais e políticas, violência,
preconceitos e exclusão social.
Os indianos
eram proibidos até de produzir o próprio sal, e o gesto simbólico de Gandhi de pegar
a água e deixar que ela evaporasse mostrou-lhes quão injustas eram as leis impostas
pelos ingleses. Por meio dessa ação, ele mostrou aos indianos a possibilidade
de resgate de sua condição humana, de se tornarem novamente senhores de si e
sujeitos de sua própria história. A rebeldia expressa nesse pequeno gesto é
portadora do futuro, é recusa e afirmação, é esperança que se materializa na
utopia transformadora.
Espera-se
que tenham compreendido como Gandhi desenvolveu um sistema de participação política
baseada na não cooperação e na não violência como forma de realizar sua utopia transformadora
da realidade social.
Nelson
Mandela
Para
compreender a trajetória de Mandela e o seu papel na construção utópica de uma sociedade
livre de preconceitos e discriminação, é preciso entender primeiro o contexto
da África do Sul. Tanto a luta de Gandhi como a de Mandela estavam intimamente ligadas
ao tema do Imperialismo.
Nelson Rolihlahla Mandela nasceu em 1918, no país
que hoje chamamos de África do Sul. Seu nome xhosa, “Rolihlahla”, pode
ser traduzido aproximadamente como “aquele que incomoda”. Mandela faleceu em 5
de dezembro de 2013, aos 95 anos.
O texto a
seguir nos ajudará a contextualizar os problemas pelos quais passava a África
do Sul na época de Mandela.
O contexto
da África do Sul no início do século XX
Ao contrário de países como o Brasil, cuja
população indígena foi drasticamente dizimada em consequência de guerras e
moléstias trazidas pelos europeus, na África do Sul, a situação era outra, pois
a maioria da população era constituída de africanos negros, submetidos ao
domínio de uma minoria branca. O grau máximo dessa dominação foi a adoção de
uma política que ficou conhecida como apartheid.
Havia, na África do Sul, uma legislação que
segregava negros e outros grupos étnicos. Há autores que afirmam que o apartheid
começou com essa legislação, por meio do Ato das Terras Nativas, de 1913.
Mas o início do apartheid é identificado apenas no ano de 1948, quando a
palavra passou a ser usada oficialmente para designar uma política que o
governo denominou de “desenvolvimento separado”, mas que, na verdade, só serviu
para estabelecer uma política ainda mais segregacionista em relação aos negros
e a outros grupos considerados não brancos.
O Ato das Terras Nativas expulsou os negros de suas
casas e determinou que eles deveriam morar em áreas “especiais”, que nada mais
eram do que pequenas reservas dentro do território sul-africano. Com esse ato,
a minoria branca ficou com 87% do território, e a maioria negra, com apenas
13%. Os africanos negros ainda eram proibidos de comprar terras fora dessas reservas,
o que impossibilitava que os agricultores tivessem seu próprio espaço para
cultivo. Dessa forma, criou-se um exército enorme de mão de obra barata que não
tinha acesso à propriedade.
Já a Lei do Passe restringia a movimentação da
população negra, pois, por meio dela, os negros foram obrigados a ter uma
espécie de passaporte para poder transitar pelo país. Somente uma pequena parte
da população negra podia viver nas cidades. Os negros só podiam entrar nas
cidades para trabalhar e eram obrigados a deixar suas famílias nas reservas e
fazer longas jornadas de ida e volta ao trabalho. Sem o passaporte, não
conseguiam emprego nem podiam viajar. Eles deveriam levá-lo sempre consigo,
pois sua apresentação poderia ser exigida a qualquer momento por um branco.
Aquele que não estivesse com o seu podia ser preso ou até perder o emprego.
Desde 1927, eram proibidas relações sexuais entre
negros e brancos fora do matrimônio. Mas a segregação institucionalizada como
política de governo iniciou-se em 1948, com a vitória do Partido Nacional. Em
1949, foram proibidos os casamentos entre negros e brancos, e, logo depois,
toda relação sexual inter-racial passou a ser proibida.
A partir desse momento, seguiu-se uma série de
outras leis segregacionistas. O apartheid só terminou no final da década
de 1990, depois que Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul e iniciou
o processo de extinção desse regime.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz
escola)
Passemos a
explicitar a trajetória de Mandela e sua construção da utopia de uma África do
Sul melhor. Assim como Gandhi, Mandela também formou-se em Direito. E foi no
período em que era estudante universitário que se envolveu na oposição ao
regime vigente no país, que negava, à maioria da população, direitos políticos,
sociais e civis, fosse ela negra ou de imigrantes (como os indianos, por
exemplo).
Segundo os
africânderes (brancos nascidos na África do Sul, de origem holandesa), os “graus
de civilização” e as diferenças culturais entre negros e brancos e mesmo entre
os negros criavam diferenças tão grandes que era necessário que os negros
tivessem um desenvolvimento separado dos brancos. Com essa justificativa,
dividiram os negros em dez grupos, sob a alegação de que pertenciam a culturas muito
diferentes entre si. Cada grupo deveria ficar em uma reserva.
Na verdade,
as diferenças entre os brancos (ingleses e africânderes) eram maiores do que as
diferenças entre os negros. Mas a divisão criava antagonismos entre os negros e
foi uma forma de atrapalhar uma possível união entre eles, o que favorecia a
dominação branca.
Em 1942,
Mandela filiou-se ao Congresso Nacional Africano (CNA), que era o partido de oposição
ao regime naquele período. E, em 1944, com alguns amigos, formou a Liga Jovem
do CNA. Entretanto, foi somente após as eleições de 1948 e a
institucionalização da política do apartheid que ele se tornou mais
ativo.
No início
de sua ação política, Mandela foi profundamente influenciado pelas ações não violentas
dos indianos em suas reivindicações, as quais eram marcadas pelas ideias de Gandhi.
Dois exemplos disso são a Campanha de Desafio, que ele coordenou em 1952, e o Congresso
do Povo, no qual seu partido, juntamente com outras associações, divulgou a Carta
da Liberdade, em 1955.
O texto a
seguir ajudará a estabelecer essa discussão com os alunos.
A Campanha de Desafio de 1952 consistiu em uma
operação que desafiava a Lei do Passe. Os dirigentes do Congresso Nacional Africano
(CNA), partido de oposição ao regime do qual participava Mandela, declararam
que, se o governo não revogasse várias leis ligadas ao apartheid, o
partido iniciaria uma campanha de boicote à legislação. Para isso, Mandela
viajou pelo país recrutando voluntários. A estratégia era a de não violência.
Em 1952, foi iniciada a campanha em uma manifestação na qual cantavam e
gritavam por liberdade. Logo ela se espalhou pelo país, mas foi fortemente
contida pela polícia. A campanha havia começado em junho e, ao final dela, em
dezembro, mais de 8 mil manifestantes estavam na cadeia. Mandela foi preso,
condenado a ficar afastado por dois anos de Johannesburgo, sede administrativa
do país, e a não participar de reuniões políticas.
Apesar do aparente fracasso da campanha, já que
nenhuma lei foi revogada, na verdade, ela foi uma forma de mostrar o potencial do
povo sul-africano e de estabelecer entre eles não apenas o sonho e a esperança,
mas a possibilidade de concretizar a utopia de uma sociedade igualitária.
Também mostrou que o CNA era um representante das aspirações do povo, uma vez
que, ao final de 1952, o número de membros do partido havia passado de 20 mil
para mais de 100 mil. A filiação política mostrou que as pessoas deixaram de
lado a resignação e a aceitação das condições vigentes e que começavam a lutar,
por meio de ações como essas, pela concretização de seus sonhos.
A Carta da Liberdade, de 1955, foi um documento que
registrou a indignação com a situação existente não só por parte da população negra,
mas também da indiana e até de dissidentes brancos. Ela resultou da união de
diversos congressos: o CNA, o Congresso Indiano, o Congresso dos Sindicatos e o
Congresso dos Democratas (este último formado por brancos), reunidos no
Congresso do Povo. Durante o Congresso do Povo, 3 mil delegados se reuniram e a
Carta da Liberdade foi lida em público. Todos os seus itens foram aprovados por
aclamação. No segundo dia de reunião desse Congresso, policiais armados subiram
ao palco e confiscaram todo o material a ser usado, e o encontro foi suspenso.
Esse documento foi tão importante que serviu como plataforma política dos
adversários do apartheid 30 anos depois do Congresso do Povo.
Em 1956, as autoridades prenderam Nelson Mandela e
decidiram condená-lo à morte por crime de traição. No entanto, a repercussão
internacional de sua prisão e de seu julgamento levou à conquista do direito de
responder ao processo em liberdade. O julgamento durou aproximadamente cinco
anos e, em 1961, ele foi declarado inocente. Mas, em 1962, foi novamente preso
e condenado à prisão perpétua em 1964. Só foi libertado em 11 de fevereiro de
1990, depois de 27 anos, por ordem de Frederic De Klerk, o presidente na época.
Quando libertado, Mandela tinha 71 anos. Em 1994,
foi eleito presidente do país, na primeira eleição multirracial da África do
Sul. Nelson Mandela faleceu no dia 5 de dezembro de 2013, devido a uma infecção
pulmonar, cujas complicações já vinha sofrendo nos últimos anos. “Madiba”, como
era conhecido na África do Sul, foi considerado um dos maiores ícones da luta
dos negros pela igualdade de direitos no país e foi um dos principais responsáveis
pelo fim do regime racista do apartheid, vigente entre 1948 e 1993.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz
escola)
É importante
estabelecer uma relação entre essas duas campanhas e a Marcha do Sal de Gandhi,
tendo como referência os objetivos desses dois líderes.
Na Marcha
do Sal, na Campanha de Desafio e no Congresso do Povo, os líderes não
procuraram lidar sozinhos com os problemas. Na verdade, contaram com o apoio de
milhares de pessoas. Isso porque a concretização de utopias só é possível pela
ação engajada de muitos.
Na Campanha
de Desafio, Mandela viajou pelo país e buscou voluntários nos mais diferentes
lugares. Já no Congresso do Povo, foram reunidos delegados, ou seja, representantes
dos mais diversos grupos – partidos, sindicatos, indianos e até brancos democratas
–, para assinar a Carta da Liberdade e mostrá-la como expressão da vontade da
maioria.
A Carta da
Liberdade foi um documento escrito em 1955 que registrou a indignação de vários
setores da sociedade civil sul-africana com a situação do país.
A Campanha
de Desafio foi uma operação ocorrida em 1952 que desafiou a Lei do Passe.
Mandela e outros participantes incitaram a campanha reivindicando liberdade, de
forma a boicotar a legislação.
Por sua
luta e capacidade de unir as mais diferentes pessoas em torno da utopia de uma sociedade
mais justa, Mandela tornou-se símbolo da luta contra o apartheid.
Martin
Luther King
Martin
Luther King Jr. (1929-1968) também foi escolhido para a reflexão sobre o sonho
e a esperança por sua luta pelos direitos civis e sociais dos negros nos
Estados Unidos da América. Ele nasceu na cidade de Atlanta, no Estado da Geórgia.
Era o filho mais velho de uma família de negros estadunidenses de classe média.
Seu pai era pastor batista e sua mãe era professora. Assim como Mohandas Gandhi
e Nelson Mandela, Martin Luther King também teve uma formação universitária, só
que em Teologia. Ele fez ainda pós-graduação nessa área e, tal como Mandela, foi
extremamente influenciado pelas ideias de Gandhi da não violência. Isso ocorreu
enquanto estava ainda na universidade. Vale a pena destacar a importância que a
educação e os livros tiveram na vida desses três líderes.
Em sua
época, os EUA possuíam, tal como a África do Sul, leis que segregavam os
negros, mas não uma política tão dura quanto o apartheid. Mesmo assim,
os negros eram considerados cidadãos de segunda classe e sofriam todo tipo de
humilhação e perseguição.
Em 1954,
Luther King tornou-se pastor da igreja batista da cidade de Montgomery, no
Estado do Alabama, e começou sua luta sistemática pelos direitos civis, sociais
e políticos dos negros. Na época, ele era o presidente da Associação de Melhoramento
de Montgomery. Por participar dessa associação, organizou, em 1955, um
movimento de boicote ao transporte público, motivado pelo episódio em que Rosa
Parks, uma passageira negra, foi presa por se recusar a dar o seu lugar em um
ônibus para um branco. Naquela época, os negros eram obrigados a ceder aos brancos
seu lugar nos assentos. O movimento durou quase um ano. Ele chegou a ser preso e
sua casa foi atacada. O boicote terminou quando a Suprema Corte emitiu um
mandato proibindo a segregação em qualquer transporte público. Foi a primeira
vitória de Martin Luther King. Dada a repercussão do caso, ele se destacou e
passou a ser um líder respeitado.
Em 1957,
juntamente com outras pessoas insatisfeitas com a situação dos negros, fundou a
Conferência da Liderança Cristã no Sul, uma organização de igrejas e pastores negros
que procurava pôr fim às leis de segregação existentes, por meio de boicotes
pacíficos. No final da década de 1950, foi à Índia, para compreender a satyagraha
que Gandhi havia criado, e, após seu retorno, organizou uma série de
protestos contra a discriminação sofrida pelos negros.
Em 1964, Martin Luther King foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz.
O mesmo aconteceu com Nelson Mandela em 1993.
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A forma de
ação política proposta por ele era muito parecida com a de Gandhi, embora Luther
King se valesse de discursos que empolgavam as multidões. Da mesma maneira que Gandhi
e Mandela, ele tinha a capacidade de envolver as pessoas em torno de uma causa,
e também foi preso diversas vezes. Ele se envolveu em vários protestos, marchas
e passeatas, sempre por meios pacíficos. Seu engajamento também foi muito
grande. Sua ação mais famosa foi a chamada Marcha sobre Washington, que ele
realizou com outros líderes, em 1963, e que contou com a participação de mais
de 200 mil pessoas na capital dos EUA. Ali proferiu seu mais importante
discurso, considerado por muitos o mais belo e o de maior impacto, que ficou
conhecido como “Eu tenho um sonho” [“I have a dream”][1].
Veja o discurso
de Martin Luther King, reproduzido a seguir.
Eu tenho um
sonho
Discurso proferido por Martin Luther King na Marcha
sobre Washington, D.C., por Trabalho e Liberdade, em 28 de agosto de 1963.
Estou contente de me reunir hoje com vocês nesta
que será conhecida como a maior demonstração pela liberdade na história de
nossa nação.
Há dez décadas, um grande americano, sob cuja
sombra simbólica nos encontramos hoje, assinou a Proclamação da Emancipação.
Esse magnífico decreto surgiu como um grande farol de esperança para milhões de
escravos negros que arderam nas chamas da árida injustiça. Ele surgiu como uma aurora
de júbilo para pôr fim à longa noite de cativeiro.
Mas cem anos depois, o negro ainda não é livre. Cem
anos depois, a vida do negro ainda está tristemente debilitada pelas algemas da
segregação e pelos grilhões da discriminação. Cem anos depois, o negro vive
isolado numa ilha de pobreza em meio a um vasto oceano de prosperidade
material. Cem anos depois, o negro ainda vive abandonado nos recantos da
sociedade na América, exilado em sua própria terra. Assim, hoje viemos aqui
para representar a nossa vergonhosa condição.
De uma certa forma, viemos à capital da nação para
descontar um cheque. Quando os arquitetos da nossa república escreveram as
magníficas palavras da Constituição e da Declaração da Independência (Sim),
eles estavam assinando uma nota promissória da qual todos os americanos seriam
herdeiros. A nota era uma promessa de que todos os homens, sim, negros e
brancos igualmente, teriam garantidos os “direitos inalienáveis à vida, à
liberdade e à busca da felicidade”. É óbvio neste momento que, no que diz
respeito a seus cidadãos de cor, a América não pagou essa promessa. Em vez de
honrar a sagrada obrigação, a América entregou à população negra um cheque
ruim, um cheque que voltou com o carimbo de “sem fundos”.
No entanto, recusamos a acreditar que o banco da
justiça esteja falido.
Recusamos a acreditar que não haja fundos
suficientes nos grandes cofres de oportunidade desta nação. E, assim, viemos
descontar esse cheque, um cheque que nos garantirá, sob demanda, as riquezas da
liberdade e a segurança da justiça.
Viemos também a este glorioso local para lembrar a
América da urgência feroz do momento. Não é hora de se comprometer com o luxo
do comedimento ou de tomar o tranquilizante do gradualismo. Agora é hora de concretizar
as promessas da democracia (Sim, Senhor). Agora é hora de deixar o vale
sombrio e desolado da segregação pelo caminho ensolarado da justiça racial.
Agora é hora de conduzir a nossa nação da areia movediça da injustiça racial
para a sólida rocha da fraternidade. Agora é hora de tornar a justiça uma
realidade para todos os filhos de Deus.
Seria fatal para a nação ignorar a urgência do
momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos negros não
passará até que haja um outono revigorante de liberdade e igualdade. O ano de
1963 não é um fim, mas um começo. E aqueles que agora esperam que o negro se
acomode e se contente terão uma grande surpresa se a nação voltar a negociar
como de costume. E não haverá descanso nem tranquilidade na América até que se
conceda ao negro a sua cidadania. As tempestades da revolta continuarão a
balançar os alicerces da nossa nação, até que floresça a luminosa manhã da
justiça.
Mas há algo que devo dizer a meu povo, diante da
entrada reconfortante no Palácio da Justiça: ao longo do processo de conquista
do nosso merecido lugar, não podemos nos condenar com atos criminosos. Não devemos
saciar a nossa sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do ódio. Devemos
sempre conduzir a nossa luta no mais alto nível de dignidade e disciplina. Não
podemos permitir que o nosso protesto degenere em violência física. Vezes sem
fim, devemos nos elevar às majestosas alturas para confrontar a força física
com a força da alma. A nova e maravilhosa militância que engolfou a comunidade
negra não deve nos levar a desconfiar de todos os homens brancos, pois muitos
de nossos irmãos brancos, como se torna evidente com a sua presença aqui hoje, compreenderam
que o seu destino está ligado ao nosso. Eles compreenderam que a sua liberdade
está atada à nossa, de forma inextricável.
Não podemos caminhar sozinhos. E, enquanto
caminhamos, devemos prometer que sempre marcharemos adiante. Não podemos
voltar. Há quem pergunte aos devotos dos direitos civis: “Quando ficarão satisfeitos?”
(Nunca).
Não ficaremos satisfeitos enquanto o negro for
vítima dos inenarráveis horrores da brutalidade policial. Não ficaremos satisfeitos
enquanto os nossos corpos, pesados pela fadiga da viagem, não obtiverem
hospitalidade nos hotéis das rodovias e das cidades. Não ficaremos satisfeitos
enquanto a única mobilidade social a que um negro possa aspirar seja deixar o
seu gueto por um outro maior. Não ficaremos satisfeitos enquanto os nossos
filhos forem despidos de sua personalidade e tiverem a sua dignidade roubada
por cartazes com os dizeres “só para brancos”. Não ficaremos satisfeitos
enquanto o negro do Mississippi não puder votar e o negro de Nova York acreditar
que não há por que votar. Não e não. Não estamos satisfeitos e nem ficaremos
satisfeitos até que “a justiça jorre como uma fonte; e a equidade, como uma
poderosa correnteza”.
Não ignoro que alguns de vocês enfrentaram inúmeros
desafios e adversidades para chegar até aqui (Sim, Senhor). Alguns de
vocês recentemente abandonaram estreitas celas de prisão. Alguns de vocês
vieram de regiões onde a busca por liberdade deixou-os abatidos pelas
tempestades da perseguição e abalados pelos ventos da brutalidade policial.
Vocês são os veteranos do sofrimento profícuo. Continuem a lutar com a fé de
que o sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o
Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para a
Louisiana, voltem para os cortiços e para os guetos das cidades do Norte,
conscientes de que, de algum modo, essa situação pode e será transformada (Sim).
Não afundemos no vale do desespero.
E digo-lhes hoje, meus amigos, mesmo diante das
dificuldades de hoje e de amanhã, ainda tenho um sonho, um sonho profundamente
enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se
erguerá e experimentará o verdadeiro significado de sua crença: “Acreditamos
que essas verdades são evidentes, que todos os homens são criados iguais” (Sim).
Eu tenho um sonho de que um dia, nas encostas
vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos sentarão ao lado dos
filhos dos antigos senhores, à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho de que um dia até mesmo o estado
do Mississippi, um estado sufocado pelo calor da injustiça, sufocado pelo calor
da opressão, será um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho de que os meus quatro filhos
pequenos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele,
mas pelo conteúdo de seu caráter (Sim, Senhor). Hoje, eu tenho um sonho!
Eu tenho um sonho de que um dia, lá no Alabama, com
o seu racismo vicioso, com o seu governador de cujos lábios gotejam as palavras
“intervenção” e “anulação”, um dia, bem no meio do Alabama, meninas e meninos
negros darão as mãos a meninas e meninos brancos, como irmãs e irmãos. Hoje, eu
tenho um sonho.
Eu tenho um sonho de que um dia todo vale será
alteado (Sim) e toda colina, abaixada; que o áspero será plano e o
torto, direito; “que se revelará a glória do Senhor e, juntas, todas as
criaturas a apreciarão” (Sim).
Esta é a nossa esperança, e esta a fé que levarei
comigo ao voltar para o Sul (Sim). Com esta fé, poderemos extrair da
montanha do desespero uma rocha de esperança (Sim). Com esta fé,
poderemos transformar os clamores dissonantes da nossa nação em uma bela sinfonia
de fraternidade. Com esta fé (Sim, Senhor), poderemos partilhar o
trabalho, partilhar a oração, partilhar a luta, partilhar a prisão e partilhar
o nosso anseio por liberdade, conscientes de que um dia seremos livres. E esse
será o dia, e esse será o dia em que todos os filhos de Deus poderão cantar com
um renovado sentido:
O meu país eu canto.
Doce terra da liberdade,
a ti eu canto.
Terra em que meus pais morreram,
Terra do orgulho peregrino,
Nas encostas de todas as montanhas,
que a liberdade ressoe!
E se a América estiver destinada a ser uma grande
nação, isso se tornará realidade.
E, assim, que a liberdade ressoe (Sim) nos
picos prodigiosos de New Hampshire.
Que a liberdade ressoe nas grandiosas montanhas de
Nova York.
Que a liberdade ressoe nos elevados Apalaches da
Pensilvânia.
Que a liberdade ressoe nas Rochosas nevadas do
Colorado.
Que a liberdade ressoe nos declives sinuosos da
Califórnia (Sim).
Mas não apenas isso: que a liberdade ressoe na
Montanha de Pedra da Geórgia (Sim).
Que a liberdade ressoe na Montanha Lookout do
Tennessee (Sim).
Que a liberdade ressoe em toda colina do
Mississippi (Sim).
Nas encostas de todas as montanhas, que a liberdade
ressoe!
E quando acontecer, quando ressoar a liberdade,
quando a liberdade ressoar em cada vila e em cada lugarejo, em cada estado e
cada cidade, anteciparemos o dia em que todos os filhos de Deus, negros e
brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, juntarão as mãos e
cantarão as palavras da velha canção dos negros:
Livres afinal! Livres afinal!
Graças ao Deus Todo-Poderoso,
Estamos livres afinal!
(KING JR., Martin L. Discurso “Eu tenho um sonho”.
In: CARSON, Clayborne; SHEPARD, Kris. (Orgs.). Um apelo à consciência:
os melhores discursos de Martin Luther King. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006).
É
importante esclarecer o sentido do seguinte trecho: “ainda tenho um sonho, um
sonho profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho de que um
dia esta nação se erguerá e experimentará o verdadeiro significado de sua
crença: ‘Acreditamos que essas verdades são evidentes, que todos os homens são
criados iguais’”. Essa parte do seu discurso é muito importante, pois, por meio
dela, ele mostrou que a sua luta não era apenas dos negros para os negros, mas,
na verdade, ela traria mudanças para toda a sociedade. Quando afirmou
que o seu sonho é o sonho americano, ele se lembrou do nascimento do país
e de sua premissa de que todos os homens são iguais. Com isso, conquistou não
só as pessoas negras, mas também muitos brancos, que compreenderam que o sonho
de Martin Luther King não era apenas para os negros, mas para toda a sociedade
estadunidense, pois essa só conseguiria viver o sonho americano de igualdade se
todos, independentemente de sua cor, passassem a ser tratados da mesma forma.
Com esse discurso, ele antecipa o que está por vir, um futuro no qual, como nos
diz Chico Buarque em sua música, a esperança possa florescer.
Ainda sobre
a trajetória de Luther King, você pode apontar que, em 1965, ele liderou outra marcha
que acabou levando à aprovação da Lei dos Direitos de Voto. Essa lei aboliu o
uso de exames que visavam impedir a população negra de votar. Também se
posicionou contra a Guerra do Vietnã e se uniu ao Movimento pela Paz no Vietnã.
Por essa última atitude, foi criticado, pois vários líderes negros achavam que
ele deveria se focar em apenas uma causa. Em 1968, quando estava em um hotel na
cidade de Memphis, foi morto a tiros por um branco opositor.
Alguns dias
depois de sua morte, o então presidente, Lyndon Johnson, assinou uma lei que
proibia a discriminação racial.
Cada um dos
três líderes fez uso de diferentes formas de participação política para a realização
de suas utopias: desde escrever em jornais, organizar greves e elaborar marchas
e caminhadas, até o envolvimento extremo com sabotagem, como no caso de
Mandela, ou a utilização da palavra por meio de discurso como forma de ação,
como Martin Luther King. Dessa maneira, os três evitaram a resignação e
desencadearam um movimento de resistência que atraiu milhares de outras pessoas
para suas causas. Assim como Mannheim, compreenderam a utopia não apenas como a
crítica ao presente ou a busca de um ideal, mas como algo que deve tomar a
forma de uma ação transformadora da realidade. Nenhum deles esperou
passivamente que seu sonho se realizasse. Nenhum deles aceitou passivamente a
situação existente. Suas ações foram, na maioria das vezes, marcadas pela não
violência, pela firmeza e pela coragem na luta pela superação das iniquidades sociais
e políticas, que privam os homens de sua condição humana e dos direitos de
cidadão. Eles são exemplos de como o sonho e a esperança podem ser
concretizados por meio da participação política e de como é possível a concretização
de utopias.
Questões
1. Explique o
significado de “Mahatma”.
2. Explique o
papel que os livros citados no texto tiveram na construção de uma utopia para
Gandhi.
3. Por que
Gandhi começou a se preocupar com os problemas dos indianos na África do Sul?
4. Faça uma
lista das ações de Gandhi e das causas em que atuou citadas no texto.
5. O que
significou a “satyagraha” no projeto de ação política de Gandhi?
6. Por que
Gandhi jejuou ao longo de sua vida?
7. O que é a
“não cooperação” proposta por Gandhi?
8. O que foi a
Marcha do Sal e qual foi sua importância para o processo de independência da Índia?
9. O que a
Marcha do Sal representou para os indianos em termos da possibilidade de
resgate da condição
humana e de sua dignidade?
10. O que foi o
Ato das Terras Nativas?
11. Em que
consistiu a Lei do Passe?
12. O que foi o apartheid,
quando começou e como terminou?
13. Cite outras leis segregacionistas do regime de apartheid.
14. O que você acha que a Marcha do Sal, a Campanha de Desafio e o
Congresso do Povo têm em comum?
15. Como Mandela conseguiu envolver as pessoas em torno de sua causa?
16. O que foi a Carta da Liberdade?
17. Em que consistiu a Campanha de Desafio?
18. Explique
que tipo de atitude você acha que esse discurso incitou nas pessoas. Uma ação
violenta ou não violenta? Justifique.
19. Escreva uma
lista com quatro problemas pelos quais os negros nos Estados Unidos da América
passavam, entre os vários que Luther King apontou no discurso.
20. Explique a
importância do trecho: “um sonho profundamente enraizado no sonho americano”.
21. Escreva um texto sobre um dos três líderes
estudados, que expresse qual era a sua utopia e a importância que a ação
política teve na realização de seu sonho e da esperança.
22. Produza uma redação sobre a importância da utopia
na transformação da realidade como forma de resgate e materialização do sonho e
da esperança. Deve refletir, ainda, sobre os seus sonhos e esperanças pessoais
e definir a utopia que lhe permite vislumbrar uma perspectiva de transformação
das condições atuais.
[1] Um trecho do discurso “I have a dream” sendo proferido por Luther King
também pode ser visto e ouvido com legendas em português no site do portal
da revista Veja:.
Acesso em: 20 dez. 2013.