quarta-feira, 16 de maio de 2018

O papel transformador da esperança e do sonho: Gandhi, Mandela e Luther King


Nosso objetivo aqui é estabelecer uma reflexão sobre o papel transformador da esperança e do sonho e da importância da utopia como forma de resgate da própria condição humana, perdida no processo de coisificação.

Para tanto, urge o despertamento para a questão do sonho e da esperança, de tal forma que possam refletir sobre seus próprios sonhos, esperanças e possíveis utopias.

Apresentaremos também fragmentos da trajetória de três líderes atuantes no século XX que, por meio da utopia de uma sociedade mais justa, também sonharam e alimentaram a esperança, mas procuraram, por meio de diferentes formas de ação política, transformar a vida de pessoas que não conseguiam viver plenamente não só a cidadania, como também a condição humana. São eles: Mahatma Gandhi, Nelson Mandela e Martin Luther King.

Infelizmente, não é possível discutir e debater de forma aprofundada as trajetórias desses três líderes que foram tão importantes no século XX. Dessa maneira, optou-se por apresentar pontos significativos da trajetória de cada um e a utopia que marcou suas vidas. Outros homens e mulheres poderiam ter sido escolhidos para essa discussão, mas optou-se por esses três personagens que, incontestavelmente, sonharam e transformaram sua esperança em ação
política.

A discussão sobre o papel da esperança e do sonho será vinculada ao papel da ação na transformação da realidade, considerando a importância da construção de utopias e as diferentes formas de lutar por elas.

A letra da música Apesar de você, de Chico Buarque, procura clarificar o sentimento do desejo de justiça e de cidadania em épocas de opressão, como a vivida na época da composição dessa letra: A Ditadura Militar no Brasil.


Apesar de você
Chico Buarque

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda

Falando de lado e olhando pro chão, viu
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia.
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar.

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Esse samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar, e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria.
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença

E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa.
Apesar de você

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia.
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal.

© Marola Edições Musicais Ltda.



Analisemos essa canção, por meio da sua interpretação a partir dos seguintes questionamentos: 1. Quem é o “você” da música Apesar de você, de Chico Buarque? 2. Em quais condições as pessoas da música se encontram? Trata-se de uma situação feliz e que permite a realização pessoal delas? Por quê? 3. Quais palavras Chico Buarque usou para mostrar o desânimo, o medo, a incerteza e o sentimento de perda de perspectivas e de liberdade? 4. Quais palavras ele usou para contrastar com a situação daquele momento tenso e sem esperanças e construir a imagem de uma outra situação?

Como forma de auxiliar a compreensão da letra, ela fala da esperança e foi escrita por Chico Buarque no período da Ditadura Militar para criticar a situação de nosso país e dizer que toda aquela opressão um dia, com certeza, terminaria.

A canção expressa a esperança de que tudo seria superado e que é possível sonhar, pensar em um futuro em que tudo viria a ser diferente. Naquele período as pessoas não podiam estabelecer uma crítica livre da situação vigente e que era necessário o uso de metáforas.

Chico Buarque – e outros compositores, como Geraldo Vandré, que se posicionaram criticamente durante o período militar – escreveu várias outras letras de protesto e esperança. Entre as músicas da época que estabeleceram uma crítica ao regime, podemos citar: Samba de Orly, Roda viva, Cálice, Pra não dizer que não falei das flores e O bêbado e a equilibrista.

Esperança e utopia

Por que vocês acham que a esperança e o sonho são importantes para a mudança?
Destacamos como a esperança e o sonho são necessários para que a resignação não tome conta das pessoas. Eles servem como estímulos à ação, sedimentam-se na ação das pessoas, não significando, portanto, uma espera passiva. Logo, a esperança é a base da superação da realidade.

Em uma sociedade marcada por injustiças e desigualdades, na qual as pessoas estão envolvidas em tensa complexidade social, constrangidas pelos poderes do Estado e das instituições, a esperança expressa o inconformismo, a insubmissão. Ela sinaliza para os indivíduos um campo de possibilidades, no qual a criatividade social e política dá o sentido de uma ação inovadora e insurgente para todos aqueles que carecem de liberdade, de imaginação e de esperança.

A esperança nos ajuda a escapar do conformismo do silêncio e da conivência, a elaborar a resistência contra a exploração e a injustiça que produzem a desumanização e a coisificação das pessoas.

O texto a seguir estabelece uma reflexão poética sobre essa questão.

O hoje e seu ser permanecem latentes nos desafios do possível e nas novas opressões derivadas da estatização da esperança e da institucionalização das carências sociais e políticas. É na insubornável e teimosa rebeldia dessa latência que o hoje pode ter sentido como amanhã, como esperança e não como espera, como sociedade e mundo tecidos a cada hora do dia, sem medo nem conformismo. O possível compreendido nas iniquidades sociais do impossível e repetitivo, o sonho invadindo a vigília, o novo nascendo como rosa no meio dos espinhos, sem o que a rosa não teria cor nem sentido.
(Texto de José de Souza Martins)


Qual é o significado de “latente”? O que se pode entender por “possível”?

Se o hoje permanece latente, significa que ele permanece não manifesto, ou seja, como que oculto ou encoberto, mas já contendo em si as possibilidades de superação da opressão e das carências sociais e políticas, como desafios e rebeldias que se constituem como prenúncio do futuro.

O possível, no texto, refere-se ao que é historicamente possível. O presente, o hoje, já contém em si aquilo que pode ser; já contém as possibilidades do futuro, do amanhã. Dado o cenário de contradições, o possível indica o que a sociedade pode ser, mas não é. A sociedade não realiza o que poderia ser porque há fatores de bloqueio dessa possibilidade, isto é, a repetição, ou seja, a reprodução das condições sociais se sobrepõe à inovação. É importante que eles apreendam que, mesmo nas condições mais difíceis, marcadas por todo tipo de carências, é preciso rebelar-se contra o conformismo e a apatia, construindo sonhos e esperanças que, ao reconhecerem as limitações do presente, trazem consigo a possibilidade de criar um futuro negador desse presente. É nesse sentido que a esperança permite a elaboração de utopias.

É importante enfatizar o significado da palavra utopia. Segundo o Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa (Curitiba: Positivo, 2004, p. 2028), a palavra utopia é uma palavra do latim moderno, mas tem origem grega: u (não) + tópos (lugar). No sentido estrito designa um não lugar, ou seja, algo que não existe. De maneira geral, essa palavra é usada para explicar um lugar que não existe ou uma ideia que não pode ser realizada, algo que se ligaria mais à fantasia, e não à realidade. Não é esse o sentido do uso do termo utopia que é proposto. Aqui, a utilização do termo baseia-se na obra Ideologia e utopia, do sociólogo Karl Mannheim.

Karl Mannheim nasceu na Hungria em 1893, onde viveu até 1919, quando se mudou para a Alemanha. Iniciou sua carreira neste país como pensador político e, em 1926, começou seu trabalho como sociólogo e professor na Universidade de Heidelberg e, mais tarde, na Universidade de Frankfurt. Fugindo do nazismo, transferiu-se para a Inglaterra em 1933, onde foi professor na London School of Economics. O reconhecimento desse autor derivou do seu trabalho na área da Sociologia do Conhecimento, entre outras teorias. Procurou também abordar em seus textos uma reflexão sobre a razão. Faleceu em 1947. Entre suas principais obras estão Ideologia e utopia, O homem e a sociedade e Diagnóstico de nosso tempo.

Leia o texto reproduzido a seguir:

Para o sociólogo Karl Mannheim (1893-1947), utopia consiste em um sistema de pensamento elaborado em determinado contexto histórico e social, mas que se põe em desacordo com ele. Ou seja, em determinada época, em grupos com consciência de suas carências e necessidades, surgem ideias e valores que transcendem os limites da realidade. É em uma situação tensa e contraditória, portanto, que surge a utopia, que consegue romper a ordem existente e conduzir a outra ordem. Nesse sentido, a utopia orienta a conduta dos indivíduos em direção a objetivos que visam transformar a realidade histórica. De maneira geral, essa palavra é, muitas vezes, vista de forma negativa, pois é associada à busca inútil por algo que nunca existiu e nem existirá, de algo “afastado da realidade”. Mas, na obra de Mannheim, é feito um uso positivo do termo, ou seja, a utopia como algo que pode ser realizado.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)


Para esse autor, a utopia não é o mero fantasiar, ou o sonho de um ideal que não pode ser concretizado. Ele resgatou a ideia de que a utopia pode, sim, ser realizada, desde que os indivíduos ajam de forma a abalar a ordem existente. Ou seja, o estado de espírito utópico que transcenda a realidade deve ter a tendência de se materializar em uma ação transformadora.

Nesse sentido, a utopia não é mero sonhar ou fantasiar outra situação, mas está ligada a uma ação para mudar a situação atual. A precondição para que ela exista é a construção de sonhos, é alimentar a esperança, acreditar na utopia e evitar a resignação ou o conformismo.

A utopia, tal como é aqui proposta, é o oposto da resignação. Resignar-se é aceitar a realidade tal como ela é, é conformar-se e submeter-se a ela e, dessa forma, colaborar para que as coisas continuem a ser como são, que a sociedade não se transforme e que a exploração e as iniquidades se reproduzam. Mas o que se pretende com esta discussão a respeito da esperança e da utopia é acentuar a importância da não resignação, da existência da esperança e do sonho e de buscar concretizar as utopias.

E qual é a importância da construção de utopias? A utopia parte de uma crítica do presente. Não é, portanto, algo puramente fantasioso ou fruto da imaginação, pois a sua constituição decorre de reflexões sobre a realidade. Mas isso não é suficiente. É necessário que as pessoas a assumam como diretriz de sua participação na luta pela recuperação dos direitos de uma cidadania plena, que só é possível com a transformação da sociedade e com a reformulação dos comportamentos e dos sonhos humanos.

Mas como concretizar a utopia? Como torná-la viável? É muito importante a reflexão a respeito disso. Os três líderes que serão discutidos na sequência orientaram-se por utopias e conseguiram realizar parte delas. A análise da biografia desses líderes permitirá perceber como eles se tornaram sujeitos da história, ou seja, foram capazes de construir o próprio futuro.

Não um futuro somente para eles, mas para a sociedade em que viviam, a partir não de uma luta solitária, e sim da união de muitas pessoas em torno da realização da utopia. E foi isso que Mahatma Gandhi, Nelson Mandela e Martin Luther King fizeram. Eles não lutaram sozinhos. Na verdade, estabeleceram diferentes formas de envolver o maior número possível de pessoas em suas lutas pela concretização de suas utopias.

Perceba as palavras construção e concretização. Para a transformação do presente, é preciso construir utopias; e que, para concretizá-las, as pessoas precisam moldar sua vida por meio da ação. Ou seja, a utopia, para ser concretizada, necessita do engajamento, da participação ativa das pessoas. Porém, não de um engajamento de apoio moral por meio de palavras, mas sim por meio de ações que mudem a realidade social.

O papel transformador da esperança e da utopia

Passamos a apresentação dos três líderes que, com sua luta, conseguiram nos mostrar o papel da esperança e da utopia na transformação da realidade social. Iniciando com Gandhi, pois ele e a sua política da não violência influenciaram tanto Mandela como Luther King.

Não pretendemos trabalhar de forma minuciosa as trajetórias desses líderes, mas pontuar como eles procuraram dar forma aos seus sonhos e esperanças por meio da participação política, no sentido de concretizar suas utopias de uma sociedade melhor.

Mahatma Gandhi

Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em Porbandar, na Índia, em 2 de outubro de 1869. Sua família pertencia à subcasta dos vaixás (mercadores e agricultores). Casou-se aos 13 anos – o que era costume na Índia – e viveu com sua esposa por mais de 60 anos, até ela falecer.
Gandhi formou-se em Direito, na Inglaterra, e exerceu essa profissão na África do Sul durante certo período de sua vida. Também foi na África do Sul que ele iniciou sua luta pela melhoria de vida dos indianos que ali residiam. Na época, o país também era colônia da Grã-Bretanha, assim como a Índia.
No final do século XIX, muitos indianos migravam para a África do Sul a fim de obter melhores condições de vida, uma vez que a situação de fome e miséria na Índia era ainda pior do que o preconceito que enfrentavam ao emigrar. Na África do Sul, eram proibidos de ficar
nas ruas após as 21 horas e precisavam viver em guetos. Também não podiam possuir terras e eram obrigados a pagar uma taxa anual de residência pelo simples fato de serem indianos.
Um dos momentos mais marcantes na sensibilização de Gandhi para as questões sociais ocorreu em uma viagem de trem. Ele estava na primeira classe e foi abordado por um homem branco que se recusou a viajar no mesmo vagão que ele, por causa de sua cor. Como havia comprado o bilhete para a primeira classe, Gandhi achou que era seu direito ali permanecer. O homem saiu e voltou acompanhado por oficiais que exigiram sua retirada para o vagão da terceira classe. Como ele se negou a sair, foi empurrado para fora do trem.
Esse episódio o fez tomar consciência dos problemas que os indianos enfrentavam na África do Sul e iniciar sua luta pela melhoria das condições de vida da população. Uma luta que começou pela indignação com as condições de vida dos indianos na África do Sul e continuou na Índia, tomando a forma da utopia transformadora.
Vários livros influenciaram as ideias de Gandhi na construção de sua utopia por uma vida melhor em sociedade, como o Bhagavad-Gita, que mostra o diálogo entre Arjuna e Krishna a respeito do sentido da vida. Essa obra é considerada a expressão máxima da literatura da Índia antiga. Ao lê-la, ele foi profundamente influenciado pelo conceito de ahimsa (não violência) que encontrou. Achava que o Bhagavad-Gita estimulava uma vida de desprendimento material e usou-o como principal fonte de apoio espiritual na sua luta. Acreditava que a busca por bens materiais o atrapalharia na realização de sua utopia. Isso o influenciou de tal forma que, em 1906, com menos de 40 anos, fez o voto de castidade que manteve por toda a sua vida.
Outras ideias que inspiraram Gandhi foram encontradas na tradição cristã expressa no Novo Testamento, no preceito cristão de dar a outra face, e no Sermão na Montanha. Além disso, ele foi marcado pelos livros Até as últimas, do pensador inglês do século XIX John Ruskin, que enfatizou que todos os tipos de trabalho deveriam ter igual valor e, acima de tudo, que o trabalho manual deveria ser visto como digno, e Desobediência civil, do estadunidense Henry David Thoreau, que considerava um dever de todo cidadão resistir à injustiça do governo.
A partir disso, Gandhi começou a realizar trabalhos manuais, como a limpeza da própria casa. Tendo isso em mente, fundou a comunidade autossuficiente Phoenix, uma das várias comunidades que ele instituiu ao longo de sua vida, tanto na África do Sul como na Índia. Apesar de já ser vegetariano, restringiu sua dieta a alimentos crus e começou a fazer jejuns. Mais tarde, os jejuns foram usados como forma de convencimento em seus protestos não violentos.
Quando retornou à Índia, em 1915, já era conhecido como um defensor dos Direitos Humanos que lutava contra a discriminação na África do Sul e como um homem que acreditava na resistência não violenta. Passou a tecer a própria roupa e desapegou-se totalmente dos bens materiais.
Na Índia, fundou outra comunidade autônoma, cujos residentes deveriam jurar abster-se de carne, sexo e álcool. Ele pregou a resistência à dominação, por meio da não violência e da desobediência civil, e o boicote aos produtos britânicos. Envolveu-se em muitas causas e foi preso diversas vezes. Na verdade, a cada vez que desobedecia a uma lei, esperava ser preso e, com isso, mostrar a injustiça. Mas a maior de todas as causas pelas quais lutou foi a da libertação da Índia, fato que só ocorreu em 1947, pouco antes de
seu assassinato, em 1948, por um radical hindu.
Gandhi pensava não só na libertação da Índia da dominação inglesa, mas também era a favor de uma profunda transformação da sociedade indiana; defendia a convivência pacífica entre hindus e muçulmanos, os dois principais grupos religiosos da Índia, que viviam em conflito. Infelizmente, essa parte da luta ele não conseguiu realizar, pois, junto com a independência da Índia, ocorreu a divisão do território indiano e a criação do Paquistão. Dessa maneira, o território indiano foi dividido em dois: de um lado a Índia, hinduísta, e de outro o Paquistão, muçulmano.
Ele foi ainda um defensor do fim da exclusão dos dalits, também conhecidos como intocáveis. A Índia era organizada oficialmente pelo sistema de castas. Segundo esse complexo sistema, boa parte da vida de uma pessoa já está traçada ao nascer, uma vez que ele determina o local de moradia, a profissão, o casamento e, sobretudo, o lugar de cada um na sociedade. Os dalits, ou intocáveis, eram pessoas sem castas e, por isso, estavam fadados a ser excluídos da sociedade indiana, pois eram considerados impuros. A eles eram destinados os piores trabalhos, como lidar com os mortos, desentupir esgotos etc. Pouco depois da morte de Gandhi, o sistema de castas foi abolido por lei. Entretanto, nunca deixou de existir de fato e, embora informalmente, ainda é um forte princípio de organização da sociedade indiana.
Gandhi chamava os dalits de “filhos de Deus” e considerava a questão da intocabilidade um grave problema do hinduísmo. Porém, nunca foi contra o sistema de castas em si e não propunha seu fim, pois o que ele criticava era a hierarquia que o sistema criava e que gerava a exclusão social de milhões de pessoas no país. De qualquer maneira, sua preocupação com essa parte da população simplesmente ignorada pelos demais foi um importante passo na realização de sua utopia de uma sociedade melhor. Como forma de realizar seu intento, ele chegou até a limpar latrinas de dalits, o que chocou a sociedade indiana.
Por sua abnegação e ajuda ao próximo, bem como pela forma exemplar como viveu, passou a ser chamado ainda em vida de Mahatma, ou seja, “grande alma”.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)


O texto, na verdade, é uma introdução para a questão das formas de participação política e da utopia de Gandhi para uma sociedade melhor.

A forma escolhida por ele para mobilizar as multidões era servir como exemplo para as pessoas. Por isso limpou as latrinas dos dalits e passou a tecer a própria roupa, entre outras ações.

É preciso pensarmos a questão do engajamento e da importância da ação para a realização das utopias. Para pensar a construção das utopias, analisemos a parte do texto que destaca a importância da leitura de uma série de livros para a construção de suas ideias. Enfatizamos o importante papel da leitura na construção de sua utopia. Observemos as ações de Gandhi e as causas em que atuou que aparecem no texto: a sua política de não violência e de desobediência.

Comece pela não violência, também conhecida pelo nome de satyagraha, palavra que pode ser traduzida como “a força da verdade”. Ela foi escolhida por Gandhi para expressar a forma de protesto político que ele passou a executar. Depois de ter contato com a obra de Thoreau, passou a chamar sua ação de “desobediência civil”. A denominação “resistência pacífica”, que muitos usaram para expressá-la, não era do seu agrado, pois ele acreditava que satyagraha pressupunha uma grande vontade interior. Gandhi se considerava e procurava ser um satyagrahi, ou seja, alguém que pratica a satyagraha, o que significa não somente evitar a violência, mas também ser amável e desejar o bem dos opositores, pois sua luta não era contra indivíduos, mas contra os males do sistema colonial.

Para isso, fez, entre outras coisas, vários jejuns públicos, como forma de pressionar as autoridades, além de escrever em jornais e editar panfletos. Para ele, o jejum não era um tipo de chantagem, mas uma forma de fazer a outra parte perceber o que era correto e concordar com ele. Seus jejuns mobilizaram o país em torno das questões que ele defendia.

Também organizou greves. A primeira ocorreu em 1919 e fez o país inteiro parar. Para Gandhi, o povo não deveria simplesmente parar de trabalhar, mas sim rezar e jejuar nesse dia. Depois, sem deixar de lado a satyagraha como forma de vida, estabeleceu um novo método de resistência: a não cooperação.

Esse era um termo criado por ele para explicar o boicote que propôs a tudo o que fosse inglês: tribunais, empregos, escolas, roupas etc. A satyagraha se relacionava com a sua utopia de uma Índia menos miserável. Para isso, elaborou a campanha de não cooperação em estágios cuidadosos, na tentativa de impedir a desordem geral. Pediu à população o boicote dos tecidos ingleses. Cada um deveria fiar a própria roupa e, assim, a tecelagem manual voltaria a vigorar no país. Ele mesmo passou a usar uma tanga de tecido rústico, típica das camadas mais pobres da população.

Entretanto, nenhum gesto seu chamou tanto a atenção do mundo como a Marcha do Sal, em 1930.

Em meados do século XX, sal era um produto caro, e muitos indianos não tinham como adquiri-lo, pois os ingleses o vendiam a preços exorbitantes. Ao mesmo tempo, os indianos eram proibidos de produzir sal. Gandhi, então, teve a ideia de rumar ao litoral para conseguir sal. Começou a marcha com apenas alguns seguidores, mas logo milhares de pessoas se uniram a eles em uma jornada de aproximadamente 24 dias até encontrar o mar. Chegando lá, Gandhi entrou no mar, orou e, com uma panela, pegou um pouco de água. Com a evaporação da água conseguiu produzir sal. Assim, infringiu a lei que impossibilitava os indianos de produzir o próprio sal. Estimulados por ele, todos os pobres ao longo da costa começaram a encher panelas de água do mar e a extrair o sal quando a água secava. Essa marcha deu autoconfiança aos indianos para não mais temer os ingleses, pois viram que era fácil não cooperar. Milhares de pessoas foram presas em toda a Índia simplesmente porque produziam o próprio sal. Os presídios ficaram lotados.
Apesar da repressão, a não violência e a não cooperação prevaleceram, e o governo colonial britânico ficou em uma situação desagradável perante a opinião pública mundial, uma vez que as pessoas eram presas e sofriam violência pelo motivo banal de deixar a água secar em uma panela como forma de obter sal. Com essa ação, Gandhi mobilizou e sensibilizou não só a sociedade indiana, mas também a opinião pública mundial. A não cooperação, aliada ao boicote dos produtos, teve grande efeito econômico. Só assim o governo britânico começou a cogitar reconhecer a independência da Índia, fato que ocorreu em 1947, quase 20 anos após a Marcha do Sal, depois de muitas outras ações, jejuns e embates de Gandhi com o governo britânico.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)

É preciso discutir qual a utopia de Gandhi, que sociedade ele queria superar e que sociedade ele desejava para o futuro. Um ponto importante para a reflexão é discutir o que a Marcha do Sal representou para os indianos em termos da possibilidade de resgate de sua condição humana e da dignidade, ambas limitadas pela ocupação inglesa e pelo contexto de carências sociais e políticas, violência, preconceitos e exclusão social.

Os indianos eram proibidos até de produzir o próprio sal, e o gesto simbólico de Gandhi de pegar a água e deixar que ela evaporasse mostrou-lhes quão injustas eram as leis impostas pelos ingleses. Por meio dessa ação, ele mostrou aos indianos a possibilidade de resgate de sua condição humana, de se tornarem novamente senhores de si e sujeitos de sua própria história. A rebeldia expressa nesse pequeno gesto é portadora do futuro, é recusa e afirmação, é esperança que se materializa na utopia transformadora.

Espera-se que tenham compreendido como Gandhi desenvolveu um sistema de participação política baseada na não cooperação e na não violência como forma de realizar sua utopia transformadora da realidade social.

Nelson Mandela

Para compreender a trajetória de Mandela e o seu papel na construção utópica de uma sociedade livre de preconceitos e discriminação, é preciso entender primeiro o contexto da África do Sul. Tanto a luta de Gandhi como a de Mandela estavam intimamente ligadas ao tema do Imperialismo.

Nelson Rolihlahla Mandela nasceu em 1918, no país que hoje chamamos de África do Sul. Seu nome xhosa, “Rolihlahla”, pode ser traduzido aproximadamente como “aquele que incomoda”. Mandela faleceu em 5 de dezembro de 2013, aos 95 anos.

O texto a seguir nos ajudará a contextualizar os problemas pelos quais passava a África do Sul na época de Mandela.

O contexto da África do Sul no início do século XX

Ao contrário de países como o Brasil, cuja população indígena foi drasticamente dizimada em consequência de guerras e moléstias trazidas pelos europeus, na África do Sul, a situação era outra, pois a maioria da população era constituída de africanos negros, submetidos ao domínio de uma minoria branca. O grau máximo dessa dominação foi a adoção de uma política que ficou conhecida como apartheid.
Havia, na África do Sul, uma legislação que segregava negros e outros grupos étnicos. Há autores que afirmam que o apartheid começou com essa legislação, por meio do Ato das Terras Nativas, de 1913. Mas o início do apartheid é identificado apenas no ano de 1948, quando a palavra passou a ser usada oficialmente para designar uma política que o governo denominou de “desenvolvimento separado”, mas que, na verdade, só serviu para estabelecer uma política ainda mais segregacionista em relação aos negros e a outros grupos considerados não brancos.
O Ato das Terras Nativas expulsou os negros de suas casas e determinou que eles deveriam morar em áreas “especiais”, que nada mais eram do que pequenas reservas dentro do território sul-africano. Com esse ato, a minoria branca ficou com 87% do território, e a maioria negra, com apenas 13%. Os africanos negros ainda eram proibidos de comprar terras fora dessas reservas, o que impossibilitava que os agricultores tivessem seu próprio espaço para cultivo. Dessa forma, criou-se um exército enorme de mão de obra barata que não tinha acesso à propriedade.
Já a Lei do Passe restringia a movimentação da população negra, pois, por meio dela, os negros foram obrigados a ter uma espécie de passaporte para poder transitar pelo país. Somente uma pequena parte da população negra podia viver nas cidades. Os negros só podiam entrar nas cidades para trabalhar e eram obrigados a deixar suas famílias nas reservas e fazer longas jornadas de ida e volta ao trabalho. Sem o passaporte, não conseguiam emprego nem podiam viajar. Eles deveriam levá-lo sempre consigo, pois sua apresentação poderia ser exigida a qualquer momento por um branco. Aquele que não estivesse com o seu podia ser preso ou até perder o emprego.
Desde 1927, eram proibidas relações sexuais entre negros e brancos fora do matrimônio. Mas a segregação institucionalizada como política de governo iniciou-se em 1948, com a vitória do Partido Nacional. Em 1949, foram proibidos os casamentos entre negros e brancos, e, logo depois, toda relação sexual inter-racial passou a ser proibida.
A partir desse momento, seguiu-se uma série de outras leis segregacionistas. O apartheid só terminou no final da década de 1990, depois que Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul e iniciou o processo de extinção desse regime.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)


Passemos a explicitar a trajetória de Mandela e sua construção da utopia de uma África do Sul melhor. Assim como Gandhi, Mandela também formou-se em Direito. E foi no período em que era estudante universitário que se envolveu na oposição ao regime vigente no país, que negava, à maioria da população, direitos políticos, sociais e civis, fosse ela negra ou de imigrantes (como os indianos, por exemplo).

Segundo os africânderes (brancos nascidos na África do Sul, de origem holandesa), os “graus de civilização” e as diferenças culturais entre negros e brancos e mesmo entre os negros criavam diferenças tão grandes que era necessário que os negros tivessem um desenvolvimento separado dos brancos. Com essa justificativa, dividiram os negros em dez grupos, sob a alegação de que pertenciam a culturas muito diferentes entre si. Cada grupo deveria ficar em uma reserva.

Na verdade, as diferenças entre os brancos (ingleses e africânderes) eram maiores do que as diferenças entre os negros. Mas a divisão criava antagonismos entre os negros e foi uma forma de atrapalhar uma possível união entre eles, o que favorecia a dominação branca.

Em 1942, Mandela filiou-se ao Congresso Nacional Africano (CNA), que era o partido de oposição ao regime naquele período. E, em 1944, com alguns amigos, formou a Liga Jovem do CNA. Entretanto, foi somente após as eleições de 1948 e a institucionalização da política do apartheid que ele se tornou mais ativo.

No início de sua ação política, Mandela foi profundamente influenciado pelas ações não violentas dos indianos em suas reivindicações, as quais eram marcadas pelas ideias de Gandhi. Dois exemplos disso são a Campanha de Desafio, que ele coordenou em 1952, e o Congresso do Povo, no qual seu partido, juntamente com outras associações, divulgou a Carta da Liberdade, em 1955.

O texto a seguir ajudará a estabelecer essa discussão com os alunos.

A Campanha de Desafio de 1952 consistiu em uma operação que desafiava a Lei do Passe. Os dirigentes do Congresso Nacional Africano (CNA), partido de oposição ao regime do qual participava Mandela, declararam que, se o governo não revogasse várias leis ligadas ao apartheid, o partido iniciaria uma campanha de boicote à legislação. Para isso, Mandela viajou pelo país recrutando voluntários. A estratégia era a de não violência. Em 1952, foi iniciada a campanha em uma manifestação na qual cantavam e gritavam por liberdade. Logo ela se espalhou pelo país, mas foi fortemente contida pela polícia. A campanha havia começado em junho e, ao final dela, em dezembro, mais de 8 mil manifestantes estavam na cadeia. Mandela foi preso, condenado a ficar afastado por dois anos de Johannesburgo, sede administrativa do país, e a não participar de reuniões políticas.
Apesar do aparente fracasso da campanha, já que nenhuma lei foi revogada, na verdade, ela foi uma forma de mostrar o potencial do povo sul-africano e de estabelecer entre eles não apenas o sonho e a esperança, mas a possibilidade de concretizar a utopia de uma sociedade igualitária. Também mostrou que o CNA era um representante das aspirações do povo, uma vez que, ao final de 1952, o número de membros do partido havia passado de 20 mil para mais de 100 mil. A filiação política mostrou que as pessoas deixaram de lado a resignação e a aceitação das condições vigentes e que começavam a lutar, por meio de ações como essas, pela concretização de seus sonhos.
A Carta da Liberdade, de 1955, foi um documento que registrou a indignação com a situação existente não só por parte da população negra, mas também da indiana e até de dissidentes brancos. Ela resultou da união de diversos congressos: o CNA, o Congresso Indiano, o Congresso dos Sindicatos e o Congresso dos Democratas (este último formado por brancos), reunidos no Congresso do Povo. Durante o Congresso do Povo, 3 mil delegados se reuniram e a Carta da Liberdade foi lida em público. Todos os seus itens foram aprovados por aclamação. No segundo dia de reunião desse Congresso, policiais armados subiram ao palco e confiscaram todo o material a ser usado, e o encontro foi suspenso. Esse documento foi tão importante que serviu como plataforma política dos adversários do apartheid 30 anos depois do Congresso do Povo.
Em 1956, as autoridades prenderam Nelson Mandela e decidiram condená-lo à morte por crime de traição. No entanto, a repercussão internacional de sua prisão e de seu julgamento levou à conquista do direito de responder ao processo em liberdade. O julgamento durou aproximadamente cinco anos e, em 1961, ele foi declarado inocente. Mas, em 1962, foi novamente preso e condenado à prisão perpétua em 1964. Só foi libertado em 11 de fevereiro de 1990, depois de 27 anos, por ordem de Frederic De Klerk, o presidente na época.
Quando libertado, Mandela tinha 71 anos. Em 1994, foi eleito presidente do país, na primeira eleição multirracial da África do Sul. Nelson Mandela faleceu no dia 5 de dezembro de 2013, devido a uma infecção pulmonar, cujas complicações já vinha sofrendo nos últimos anos. “Madiba”, como era conhecido na África do Sul, foi considerado um dos maiores ícones da luta dos negros pela igualdade de direitos no país e foi um dos principais responsáveis pelo fim do regime racista do apartheid, vigente entre 1948 e 1993.
(Elaborado especialmente para o São Paulo faz escola)

É importante estabelecer uma relação entre essas duas campanhas e a Marcha do Sal de Gandhi, tendo como referência os objetivos desses dois líderes.

Na Marcha do Sal, na Campanha de Desafio e no Congresso do Povo, os líderes não procuraram lidar sozinhos com os problemas. Na verdade, contaram com o apoio de milhares de pessoas. Isso porque a concretização de utopias só é possível pela ação engajada de muitos.

Na Campanha de Desafio, Mandela viajou pelo país e buscou voluntários nos mais diferentes lugares. Já no Congresso do Povo, foram reunidos delegados, ou seja, representantes dos mais diversos grupos – partidos, sindicatos, indianos e até brancos democratas –, para assinar a Carta da Liberdade e mostrá-la como expressão da vontade da maioria.

A Carta da Liberdade foi um documento escrito em 1955 que registrou a indignação de vários setores da sociedade civil sul-africana com a situação do país.

A Campanha de Desafio foi uma operação ocorrida em 1952 que desafiou a Lei do Passe. Mandela e outros participantes incitaram a campanha reivindicando liberdade, de forma a boicotar a legislação.

Por sua luta e capacidade de unir as mais diferentes pessoas em torno da utopia de uma sociedade mais justa, Mandela tornou-se símbolo da luta contra o apartheid.

Martin Luther King

Martin Luther King Jr. (1929-1968) também foi escolhido para a reflexão sobre o sonho e a esperança por sua luta pelos direitos civis e sociais dos negros nos Estados Unidos da América. Ele nasceu na cidade de Atlanta, no Estado da Geórgia. Era o filho mais velho de uma família de negros estadunidenses de classe média. Seu pai era pastor batista e sua mãe era professora. Assim como Mohandas Gandhi e Nelson Mandela, Martin Luther King também teve uma formação universitária, só que em Teologia. Ele fez ainda pós-graduação nessa área e, tal como Mandela, foi extremamente influenciado pelas ideias de Gandhi da não violência. Isso ocorreu enquanto estava ainda na universidade. Vale a pena destacar a importância que a educação e os livros tiveram na vida desses três líderes.

Em sua época, os EUA possuíam, tal como a África do Sul, leis que segregavam os negros, mas não uma política tão dura quanto o apartheid. Mesmo assim, os negros eram considerados cidadãos de segunda classe e sofriam todo tipo de humilhação e perseguição.

Em 1954, Luther King tornou-se pastor da igreja batista da cidade de Montgomery, no Estado do Alabama, e começou sua luta sistemática pelos direitos civis, sociais e políticos dos negros. Na época, ele era o presidente da Associação de Melhoramento de Montgomery. Por participar dessa associação, organizou, em 1955, um movimento de boicote ao transporte público, motivado pelo episódio em que Rosa Parks, uma passageira negra, foi presa por se recusar a dar o seu lugar em um ônibus para um branco. Naquela época, os negros eram obrigados a ceder aos brancos seu lugar nos assentos. O movimento durou quase um ano. Ele chegou a ser preso e sua casa foi atacada. O boicote terminou quando a Suprema Corte emitiu um mandato proibindo a segregação em qualquer transporte público. Foi a primeira vitória de Martin Luther King. Dada a repercussão do caso, ele se destacou e passou a ser um líder respeitado.

Em 1957, juntamente com outras pessoas insatisfeitas com a situação dos negros, fundou a Conferência da Liderança Cristã no Sul, uma organização de igrejas e pastores negros que procurava pôr fim às leis de segregação existentes, por meio de boicotes pacíficos. No final da década de 1950, foi à Índia, para compreender a satyagraha que Gandhi havia criado, e, após seu retorno, organizou uma série de protestos contra a discriminação sofrida pelos negros.


Em 1964, Martin Luther King foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz.
O mesmo aconteceu com Nelson Mandela em 1993.


A forma de ação política proposta por ele era muito parecida com a de Gandhi, embora Luther King se valesse de discursos que empolgavam as multidões. Da mesma maneira que Gandhi e Mandela, ele tinha a capacidade de envolver as pessoas em torno de uma causa, e também foi preso diversas vezes. Ele se envolveu em vários protestos, marchas e passeatas, sempre por meios pacíficos. Seu engajamento também foi muito grande. Sua ação mais famosa foi a chamada Marcha sobre Washington, que ele realizou com outros líderes, em 1963, e que contou com a participação de mais de 200 mil pessoas na capital dos EUA. Ali proferiu seu mais importante discurso, considerado por muitos o mais belo e o de maior impacto, que ficou conhecido como “Eu tenho um sonho” [“I have a dream”][1].

Veja o discurso de Martin Luther King, reproduzido a seguir.

Eu tenho um sonho

Discurso proferido por Martin Luther King na Marcha sobre Washington, D.C., por Trabalho e Liberdade, em 28 de agosto de 1963.

Estou contente de me reunir hoje com vocês nesta que será conhecida como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.
Há dez décadas, um grande americano, sob cuja sombra simbólica nos encontramos hoje, assinou a Proclamação da Emancipação. Esse magnífico decreto surgiu como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que arderam nas chamas da árida injustiça. Ele surgiu como uma aurora de júbilo para pôr fim à longa noite de cativeiro.
Mas cem anos depois, o negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do negro ainda está tristemente debilitada pelas algemas da segregação e pelos grilhões da discriminação. Cem anos depois, o negro vive isolado numa ilha de pobreza em meio a um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o negro ainda vive abandonado nos recantos da sociedade na América, exilado em sua própria terra. Assim, hoje viemos aqui para representar a nossa vergonhosa condição.
De uma certa forma, viemos à capital da nação para descontar um cheque. Quando os arquitetos da nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração da Independência (Sim), eles estavam assinando uma nota promissória da qual todos os americanos seriam herdeiros. A nota era uma promessa de que todos os homens, sim, negros e brancos igualmente, teriam garantidos os “direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade”. É óbvio neste momento que, no que diz respeito a seus cidadãos de cor, a América não pagou essa promessa. Em vez de honrar a sagrada obrigação, a América entregou à população negra um cheque ruim, um cheque que voltou com o carimbo de “sem fundos”.
No entanto, recusamos a acreditar que o banco da justiça esteja falido.
Recusamos a acreditar que não haja fundos suficientes nos grandes cofres de oportunidade desta nação. E, assim, viemos descontar esse cheque, um cheque que nos garantirá, sob demanda, as riquezas da liberdade e a segurança da justiça.
Viemos também a este glorioso local para lembrar a América da urgência feroz do momento. Não é hora de se comprometer com o luxo do comedimento ou de tomar o tranquilizante do gradualismo. Agora é hora de concretizar as promessas da democracia (Sim, Senhor). Agora é hora de deixar o vale sombrio e desolado da segregação pelo caminho ensolarado da justiça racial. Agora é hora de conduzir a nossa nação da areia movediça da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade. Agora é hora de tornar a justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.
Seria fatal para a nação ignorar a urgência do momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos negros não passará até que haja um outono revigorante de liberdade e igualdade. O ano de 1963 não é um fim, mas um começo. E aqueles que agora esperam que o negro se acomode e se contente terão uma grande surpresa se a nação voltar a negociar como de costume. E não haverá descanso nem tranquilidade na América até que se conceda ao negro a sua cidadania. As tempestades da revolta continuarão a balançar os alicerces da nossa nação, até que floresça a luminosa manhã da justiça.
Mas há algo que devo dizer a meu povo, diante da entrada reconfortante no Palácio da Justiça: ao longo do processo de conquista do nosso merecido lugar, não podemos nos condenar com atos criminosos. Não devemos saciar a nossa sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do ódio. Devemos sempre conduzir a nossa luta no mais alto nível de dignidade e disciplina. Não podemos permitir que o nosso protesto degenere em violência física. Vezes sem fim, devemos nos elevar às majestosas alturas para confrontar a força física com a força da alma. A nova e maravilhosa militância que engolfou a comunidade negra não deve nos levar a desconfiar de todos os homens brancos, pois muitos de nossos irmãos brancos, como se torna evidente com a sua presença aqui hoje, compreenderam que o seu destino está ligado ao nosso. Eles compreenderam que a sua liberdade está atada à nossa, de forma inextricável.
Não podemos caminhar sozinhos. E, enquanto caminhamos, devemos prometer que sempre marcharemos adiante. Não podemos voltar. Há quem pergunte aos devotos dos direitos civis: “Quando ficarão satisfeitos?” (Nunca).
Não ficaremos satisfeitos enquanto o negro for vítima dos inenarráveis horrores da brutalidade policial. Não ficaremos satisfeitos enquanto os nossos corpos, pesados pela fadiga da viagem, não obtiverem hospitalidade nos hotéis das rodovias e das cidades. Não ficaremos satisfeitos enquanto a única mobilidade social a que um negro possa aspirar seja deixar o seu gueto por um outro maior. Não ficaremos satisfeitos enquanto os nossos filhos forem despidos de sua personalidade e tiverem a sua dignidade roubada por cartazes com os dizeres “só para brancos”. Não ficaremos satisfeitos enquanto o negro do Mississippi não puder votar e o negro de Nova York acreditar que não há por que votar. Não e não. Não estamos satisfeitos e nem ficaremos satisfeitos até que “a justiça jorre como uma fonte; e a equidade, como uma poderosa correnteza”.
Não ignoro que alguns de vocês enfrentaram inúmeros desafios e adversidades para chegar até aqui (Sim, Senhor). Alguns de vocês recentemente abandonaram estreitas celas de prisão. Alguns de vocês vieram de regiões onde a busca por liberdade deixou-os abatidos pelas tempestades da perseguição e abalados pelos ventos da brutalidade policial. Vocês são os veteranos do sofrimento profícuo. Continuem a lutar com a fé de que o sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para a Louisiana, voltem para os cortiços e para os guetos das cidades do Norte, conscientes de que, de algum modo, essa situação pode e será transformada (Sim). Não afundemos no vale do desespero.
E digo-lhes hoje, meus amigos, mesmo diante das dificuldades de hoje e de amanhã, ainda tenho um sonho, um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e experimentará o verdadeiro significado de sua crença: “Acreditamos que essas verdades são evidentes, que todos os homens são criados iguais” (Sim).
Eu tenho um sonho de que um dia, nas encostas vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos sentarão ao lado dos filhos dos antigos senhores, à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho de que um dia até mesmo o estado do Mississippi, um estado sufocado pelo calor da injustiça, sufocado pelo calor da opressão, será um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho de que os meus quatro filhos pequenos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter (Sim, Senhor). Hoje, eu tenho um sonho!
Eu tenho um sonho de que um dia, lá no Alabama, com o seu racismo vicioso, com o seu governador de cujos lábios gotejam as palavras “intervenção” e “anulação”, um dia, bem no meio do Alabama, meninas e meninos negros darão as mãos a meninas e meninos brancos, como irmãs e irmãos. Hoje, eu tenho um sonho.
Eu tenho um sonho de que um dia todo vale será alteado (Sim) e toda colina, abaixada; que o áspero será plano e o torto, direito; “que se revelará a glória do Senhor e, juntas, todas as criaturas a apreciarão” (Sim).
Esta é a nossa esperança, e esta a fé que levarei comigo ao voltar para o Sul (Sim). Com esta fé, poderemos extrair da montanha do desespero uma rocha de esperança (Sim). Com esta fé, poderemos transformar os clamores dissonantes da nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé (Sim, Senhor), poderemos partilhar o trabalho, partilhar a oração, partilhar a luta, partilhar a prisão e partilhar o nosso anseio por liberdade, conscientes de que um dia seremos livres. E esse será o dia, e esse será o dia em que todos os filhos de Deus poderão cantar com um renovado sentido:
O meu país eu canto.
Doce terra da liberdade,
a ti eu canto.
Terra em que meus pais morreram,
Terra do orgulho peregrino,
Nas encostas de todas as montanhas,
que a liberdade ressoe!
E se a América estiver destinada a ser uma grande nação, isso se tornará realidade.
E, assim, que a liberdade ressoe (Sim) nos picos prodigiosos de New Hampshire.
Que a liberdade ressoe nas grandiosas montanhas de Nova York.
Que a liberdade ressoe nos elevados Apalaches da Pensilvânia.
Que a liberdade ressoe nas Rochosas nevadas do Colorado.
Que a liberdade ressoe nos declives sinuosos da Califórnia (Sim).
Mas não apenas isso: que a liberdade ressoe na Montanha de Pedra da Geórgia (Sim).
Que a liberdade ressoe na Montanha Lookout do Tennessee (Sim).
Que a liberdade ressoe em toda colina do Mississippi (Sim).
Nas encostas de todas as montanhas, que a liberdade ressoe!
E quando acontecer, quando ressoar a liberdade, quando a liberdade ressoar em cada vila e em cada lugarejo, em cada estado e cada cidade, anteciparemos o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, juntarão as mãos e cantarão as palavras da velha canção dos negros:
Livres afinal! Livres afinal!
Graças ao Deus Todo-Poderoso,
Estamos livres afinal!
(KING JR., Martin L. Discurso “Eu tenho um sonho”. In: CARSON, Clayborne; SHEPARD, Kris. (Orgs.). Um apelo à consciência: os melhores discursos de Martin Luther King. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006).

É importante esclarecer o sentido do seguinte trecho: “ainda tenho um sonho, um sonho profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e experimentará o verdadeiro significado de sua crença: ‘Acreditamos que essas verdades são evidentes, que todos os homens são criados iguais’”. Essa parte do seu discurso é muito importante, pois, por meio dela, ele mostrou que a sua luta não era apenas dos negros para os negros, mas, na verdade, ela traria mudanças para toda a sociedade. Quando afirmou que o seu sonho é o sonho americano, ele se lembrou do nascimento do país e de sua premissa de que todos os homens são iguais. Com isso, conquistou não só as pessoas negras, mas também muitos brancos, que compreenderam que o sonho de Martin Luther King não era apenas para os negros, mas para toda a sociedade estadunidense, pois essa só conseguiria viver o sonho americano de igualdade se todos, independentemente de sua cor, passassem a ser tratados da mesma forma. Com esse discurso, ele antecipa o que está por vir, um futuro no qual, como nos diz Chico Buarque em sua música, a esperança possa florescer.

Ainda sobre a trajetória de Luther King, você pode apontar que, em 1965, ele liderou outra marcha que acabou levando à aprovação da Lei dos Direitos de Voto. Essa lei aboliu o uso de exames que visavam impedir a população negra de votar. Também se posicionou contra a Guerra do Vietnã e se uniu ao Movimento pela Paz no Vietnã. Por essa última atitude, foi criticado, pois vários líderes negros achavam que ele deveria se focar em apenas uma causa. Em 1968, quando estava em um hotel na cidade de Memphis, foi morto a tiros por um branco opositor.

Alguns dias depois de sua morte, o então presidente, Lyndon Johnson, assinou uma lei que proibia a discriminação racial.

Cada um dos três líderes fez uso de diferentes formas de participação política para a realização de suas utopias: desde escrever em jornais, organizar greves e elaborar marchas e caminhadas, até o envolvimento extremo com sabotagem, como no caso de Mandela, ou a utilização da palavra por meio de discurso como forma de ação, como Martin Luther King. Dessa maneira, os três evitaram a resignação e desencadearam um movimento de resistência que atraiu milhares de outras pessoas para suas causas. Assim como Mannheim, compreenderam a utopia não apenas como a crítica ao presente ou a busca de um ideal, mas como algo que deve tomar a forma de uma ação transformadora da realidade. Nenhum deles esperou passivamente que seu sonho se realizasse. Nenhum deles aceitou passivamente a situação existente. Suas ações foram, na maioria das vezes, marcadas pela não violência, pela firmeza e pela coragem na luta pela superação das iniquidades sociais e políticas, que privam os homens de sua condição humana e dos direitos de cidadão. Eles são exemplos de como o sonho e a esperança podem ser concretizados por meio da participação política e de como é possível a concretização de utopias.


Questões

1. Explique o significado de “Mahatma”.
2. Explique o papel que os livros citados no texto tiveram na construção de uma utopia para Gandhi.
3. Por que Gandhi começou a se preocupar com os problemas dos indianos na África do Sul?
4. Faça uma lista das ações de Gandhi e das causas em que atuou citadas no texto.
5. O que significou a “satyagraha” no projeto de ação política de Gandhi?
6. Por que Gandhi jejuou ao longo de sua vida?
7. O que é a “não cooperação” proposta por Gandhi?
8. O que foi a Marcha do Sal e qual foi sua importância para o processo de independência da Índia?
9. O que a Marcha do Sal representou para os indianos em termos da possibilidade de resgate da condição humana e de sua dignidade?
10. O que foi o Ato das Terras Nativas?
11. Em que consistiu a Lei do Passe?
12. O que foi o apartheid, quando começou e como terminou?
13. Cite outras leis segregacionistas do regime de apartheid.
14. O que você acha que a Marcha do Sal, a Campanha de Desafio e o Congresso do Povo têm em comum?
15. Como Mandela conseguiu envolver as pessoas em torno de sua causa?
16. O que foi a Carta da Liberdade?
17. Em que consistiu a Campanha de Desafio?
18. Explique que tipo de atitude você acha que esse discurso incitou nas pessoas. Uma ação violenta ou não violenta? Justifique.
19. Escreva uma lista com quatro problemas pelos quais os negros nos Estados Unidos da América passavam, entre os vários que Luther King apontou no discurso.
20. Explique a importância do trecho: “um sonho profundamente enraizado no sonho americano”.
21. Escreva um texto sobre um dos três líderes estudados, que expresse qual era a sua utopia e a importância que a ação política teve na realização de seu sonho e da esperança.
22. Produza uma redação sobre a importância da utopia na transformação da realidade como forma de resgate e materialização do sonho e da esperança. Deve refletir, ainda, sobre os seus sonhos e esperanças pessoais e definir a utopia que lhe permite vislumbrar uma perspectiva de transformação das condições atuais. 


[1] Um trecho do discurso “I have a dream” sendo proferido por Luther King também pode ser visto e ouvido com legendas em português no site do portal da revista Veja:. Acesso em: 20 dez. 2013.

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