A política brasileira, desde a Primeira República, convive com um paradoxo: a tensão entre avanços democráticos e tentativas recorrentes de centralização autoritária do poder. Dois episódios, separados por quase um século, ilustram esse fenômeno: o Plano Cohen, em 1937, e a Minuta do Golpe, revelada em 2023. Ambos têm em comum o uso de documentos como armas políticas. Mas, enquanto o primeiro pavimentou o caminho para uma ditadura, o segundo revelou-se um instrumento de denúncia e reforço da ordem democrática.
Plano Cohen: o medo como instrumento de poder
O Plano Cohen foi redigido pelo capitão Olímpio Mourão Filho, então integrante da Ação Integralista Brasileira. O texto, apresentado como prova de uma iminente revolução comunista, descrevia atos de violência e tomada do poder. Getúlio Vargas utilizou o documento para justificar medidas de exceção, decretando estado de guerra e, pouco depois, o Estado Novo (1937-1945). Como observa Boris Fausto em História do Brasil (2006), tratou-se menos de um alerta militar e mais de uma peça retórica destinada a legitimar o autoritarismo. O contexto favorecia a manobra: fragilidade institucional, censura à imprensa e uma sociedade pouco acostumada ao debate público.
A minuta do golpe: o documento que não prosperou
Em 2023, o Brasil, agora sob uma democracia consolidada, foi surpreendido pela divulgação de um documento encontrado na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. A chamada “minuta do golpe” detalhava um possível decreto de intervenção sobre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a decretação de “estado de defesa” para contestar o resultado das urnas de 2022, que consagraram a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva sobre Jair Bolsonaro. A Polícia Federal, em seu relatório final, identificou o texto como parte de uma articulação para tentar reverter a derrota eleitoral. Ao contrário de 1937, o documento não serviu para justificar um regime autoritário; tornou-se prova de uma tentativa frustrada.O que mudou? A lição da história e a força das instituições
Autores como Norberto Bobbio (O futuro da democracia, 1984) lembram que a democracia exige vigilância constante, pois o risco de retrocesso é inerente a qualquer sistema político. Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo (1951), alerta para o perigo do medo como justificativa para a supressão de direitos. O caso de 2023 confirma essas análises: se a história parece se repetir, o contexto faz diferença. Hoje, imprensa livre, redes sociais, órgãos de controle e uma sociedade civil mais ativa impediram que a minuta deixasse de ser um papel para se tornar decreto.
O cientista político Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936), discute o patrimonialismo e o personalismo na política nacional. Esses traços ainda se manifestam, mas a reação institucional ao episódio de 2023 demonstra amadurecimento. O Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, a imprensa e a mobilização social formaram uma rede de contenção que, apesar de suas imperfeições, mostrou maior solidez do que no passado.
O que aprendemos?
O paralelo entre o Plano Cohen e a minuta do golpe de 2023 mostra que documentos podem ser armas políticas, mas também espelhos da sociedade em que surgem. Em 1937, um texto forjado justificou a suspensão das liberdades. Em 2023, um texto real serviu como prova contra quem tentou subvertê-las. A lição é clara: a democracia não é um estado permanente, mas um processo vivo que depende da memória histórica, da transparência e da resistência das instituições.
Não basta lembrar; é preciso educar. Esquecer é o maior risco. O Brasil aprendeu, a duras penas, que não existe “golpe preventivo” ou “ruptura necessária”. Toda vez que um papel é usado para ameaçar as instituições, o futuro da sociedade está em jogo. Que esse episódio sirva não como ponto final, mas como lembrete: nossa democracia é jovem, mas não é ingênua.
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Profº Me. Valter Borges