Entre os
estudiosos que se preocuparam em analisar a relação do indivíduo com a
sociedade, destacam-se autores clássicos da Sociologia, como Karl Marx, Émile
Durkheim, Max Weber, Nobert Elias e Pierre Bourdieu. Neste texto examinaremos
as diferentes perspectivas adotadas por esses autores para analisar o processo
de constituição da sociedade e a maneira como os indivíduos se relacionam.
Norbert
Elias e Pierre Bourdieu: a sociedade dos indivíduos
Examinamos
até aqui três diferentes perspectivas de análise da relação entre indivíduo e
sociedade. Para Marx, o foco recai sobre os indivíduos inseridos nas classes
sociais. Para Durkheim, o fundamental é a sociedade e a integração dos
indivíduos nela. Para Weber, os indivíduos e suas ações são os elementos constitutivos
da sociedade. Apesar das perspectivas diferentes, todos buscaram explicar o
processo de constituição da sociedade e a maneira como os indivíduos se
relacionam, procurando identificar as ações e instituições fundamentais.
Dois
autores contemporâneos analisaram a relação entre indivíduo e sociedade procurando
integrar esses polos: o sociólogo alemão Norbert Elias e o francês Pierre
Bourdieu. Vamos conhecer a seguir os principais conceitos que ambos
construíram.
O
conceito de configuração
De acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), é comum distanciarmos indivíduo e sociedade quando falamos dessa relação, pois parece que julgamos impossível haver, ao mesmo tempo, bem-estar e felicidade individual e uma sociedade livre de conflitos. De um lado está o pensamento de que as instituições — família, escola e Estado — devem estar a serviço da felicidade e do bem-estar de todos; de outro, a ideia da unidade social acima da vida individual.
De acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), é comum distanciarmos indivíduo e sociedade quando falamos dessa relação, pois parece que julgamos impossível haver, ao mesmo tempo, bem-estar e felicidade individual e uma sociedade livre de conflitos. De um lado está o pensamento de que as instituições — família, escola e Estado — devem estar a serviço da felicidade e do bem-estar de todos; de outro, a ideia da unidade social acima da vida individual.
As
distinções entre indivíduo e sociedade levam a pensar que se trata de duas coisas
separadas, como mesas e cadeiras, tachos e panelas. Ora, é somente nas relações
e por meio delas que “os indivíduos podem possuir características humanas, como
falar, pensar e amar”, como diz Elias em seu livro A sociedade dos
indivíduos. E poderíamos complementar declarando que só é possível
trabalhar, estudar e divertir-se em uma sociedade que tenha história, cultura e
educação, e não isoladamente.
Para
explicar melhor o que afirma e superar a dicotomia entre indivíduo e sociedade,
Elias criou o conceito de configuração (ou figuração). É uma
ideia que nos ajuda a pensar nessa relação de forma dinâmica, como acontece na
realidade.
Tomemos
um exemplo: se quatro pessoas se sentam em volta da mesa para jogar baralho,
formam uma configuração, pois o jogo é uma unidade que não pode ser vista sem
os participantes e sem as regras. Sozinho, nenhum deles consegue jogar; juntos,
cada um tem sua própria estratégia para seguir as regras e vencer.
Vamos
citar um exemplo mais brasileiro. Em um jogo de futebol, temos outra configuração,
ou seja, há um conjunto de “eus”, de “eles”, de “nós”. Um time de futebol é
composto de vários “eus” — os jogadores —, que têm um objetivo único ao
disputar com os do outro time. Há também as regras que devem ser levadas em
conta e a presença de um juiz e dos bandeirinhas, que lá estão para marcar as
possíveis infrações. Além disso, há a torcida, que também faz parte do jogo e
congrega vários outros indivíduos com interesses diferentes, mas que, nessa configuração,
têm um objetivo único: torcer para que seu time vença.
Assim, há
um fluxo contínuo durante o jogo, que só pode ser entendido nesse contexto,
nessa configuração. Essa relação acontece entre os jogadores, entre eles e a torcida,
entre eles e o técnico, entre os torcedores, e entre todos e as regras, os juízes,
os bandeirinhas, os técnicos e os gandulas. Fora desse contexto, não há jogo de
futebol, apenas pessoas, que viverão outra configuração, em outros momentos.
No grupo
social é assim: não há separação entre indivíduo e sociedade.
Tudo deve
ser entendido de acordo com o contexto; caso contrário, perdem-se a dinâmica da
realidade e o poder de entendimento.
O
conceito de configuração pode ser aplicado a pequenos grupos ou a sociedades
inteiras, constituídas de pessoas que se relacionam. Esse conceito chama a
atenção para a interdependência entre as pessoas. Por isso, Elias utiliza a
expressão sociedade dos indivíduos, realçando a unidade, e não a
divisão.
Nas Palavras
de Elias:
Escolhas e repercussão social
Toda sociedade grande e complexa tem, na verdade,
as duas qualidades: é muito firme e muito elástica. Em seu interior,
constantemente se abre um espaço para as decisões individuais. Apresentam-se
oportunidades que podem ser aproveitadas ou perdidas. Aparecem encruzilhadas em
que as pessoas têm de fazer escolhas, e de suas escolhas, conforme sua posição
social, pode depender seu destino pessoal imediato, ou o de uma família
inteira, ou ainda, em certas situações, de nações inteiras ou de grupos dentro
delas. Pode depender de suas escolhas que a resolução completa das tensões
existentes ocorra na geração atual ou somente na seguinte. Delas pode depender
a determinação de qual das pessoas ou grupos em confronto, dentro de um sistema
particular de tensões, se tornará o executor das transformações para as quais
as tensões estão impelindo, e de que lado e em que lugar se localizarão os
centros das novas formas de integração rumo às quais se deslocam as mais
antigas, em virtude, sempre, de suas tensões. Mas as oportunidades entre as
quais a pessoa assim se vê forçada a optar não são, em si mesmas, criadas por
essa pessoa. São prescritas e limitadas pela estrutura específica de sua
sociedade e pela natureza das funções que as pessoas exercem dentro dela. E,
seja qual for a oportunidade que ela aproveite, seu ato se entremeará com os de
outras pessoas; desencadeará outras sequências de ações, cuja direção e
resultado provisório não dependerão desse indivíduo, mas da distribuição do
poder e da estrutura das tensões em toda essa rede humana móvel.
(Elias, Norbert. A
sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 48.)
O conceito de habitus
Habitus é outro
conceito utilizado por Norbert Elias. É muito interessante porque, além de
esclarecedor, estabelece uma ligação entre o pensamento de Elias e o do francês
Pierre Bourdieu (1930-2002). Para Elias, habitus é algo como uma segunda
natureza, ou melhor, um saber social incorporado durante nossa vida em
sociedade. Ele afirma que o destino de uma nação, ao longo dos séculos, fica
sedimentado no habitus de seus membros. É algo que muda constantemente,
mas não rapidamente, e, por isso, há equilíbrio entre continuidade e mudança.
A
preocupação de Bourdieu, ao retomar o conceito de habitus,, era a mesma de
Elias: ligar teoricamente indivíduo e sociedade. Não há diferença entre o que
Elias e Bourdieu pensam em termos gerais, apenas na maneira de propor a
questão. Para Bourdieu, o habitus se apresenta como social e individual
ao mesmo tempo, e refere-se tanto a um grupo quanto a uma classe e, obrigatoriamente,
também ao indivíduo.
A questão
fundamental para ele é mostrar a articulação entre as condições de existência
do indivíduo e suas formas de ação e percepção, dentro ou fora dos grupos.
Dessa maneira, seu conceito de habitus é o que articula práticas cotidianas
— a vida concreta dos indivíduos — com as condições de classe de determinada
sociedade, ou seja, a conduta dos indivíduos e as estruturas mais amplas.
Fundem-se as condições objetivas com as subjetivas.
Para
Bourdieu, o habitus é estruturado por meio das instituições de socialização
dos agentes (a família e a escola, principalmente), e é aí que a ênfase na análise
do habitus deve ser colocada, pois são essas primeiras categorias e
valores que orientam a prática futura dos indivíduos. Esse seria o habitus primário,
por isso mais duradouro — mas não congelado no tempo.
À medida
que se relaciona com pessoas de outros universos de vida, o indivíduo
desenvolve um habitus secundário não contrário ao anterior, mas indissociável
daquele. Assim vai construindo um habitus individual conforme agrega
experiências continuamente. Isso não significa que será uma pessoa radicalmente
diferente da que era antes, pois se modifica sem perder suas marcas de origem,
de seu grupo familiar ou da classe na qual nasceu. Os conceitos e valores dos indivíduos
(sua subjetividade), segundo Bourdieu, têm uma relação muito intensa com o
lugar que ocupam na sociedade. Não há igualdade de posições, pois se vive numa
sociedade desigual.
Por
exemplo, no Brasil, teoricamente, todos podem ingressar na universidade, mas,
de fato, as chances de que isso aconteça são remotas, porque há condições
objetivas e subjetivas que criam um impedimento: a falta de vagas, as
deficiências do ensino básico, um vestibular que elimina a maioria ou um
pensamento como este: “Não adianta nem tentar, pois não vou conseguir”. Ou
este: “Para que ingressar em um curso superior se depois
não terei
possibilidade de exercer a profissão?”
Nas
Palavras de Bourdieu:
Habitus, o que é
isso?
Os habitus são princípios geradores de
práticas distintas e distintivas — o que o operário come, e, sobretudo, sua
maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas
opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do
consumo ou das atividades correspondentes do empresário industrial; mas são
também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de
visão e de divisão e gostos diferentes. Eles estabelecem as diferenças entre o
que é bom e mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é vulgar
etc., mas elas não são as mesmas. Assim, por exemplo, o mesmo comportamento ou
o mesmo bem pode parecer distinto para um, pretensioso ou ostentatório para
outro e vulgar para um terceiro.
(Bourdieu, Pierre. Razões
práticas. 4. ed. Campinas: Papirus, 1996. p. 22.)
Como se
pode perceber, a Sociologia oferece várias possibilidades teóricas para a
análise da relação entre indivíduo e sociedade. Esse é apenas um exemplo de
como os sociólogos trabalham. Muitos autores analisam as mesmas questões e
propõem alternativas a fim de que se possa escolher a perspectiva mais
apropriada para examinar a realidade em que se vive e buscar respostas para as
perguntas que se fazem. A diversidade de análises é um dos elementos essenciais
do pensamento sociológico.
____________________
FONTE: Tomazi, Nelson Dacio - Sociologia
para o ensino médio / Nelson Dacio Tomazi. —2. ed. — São Paulo : Saraiva, 2010,
pg. 28 - 31.