Vamos aprofundarmos nesse texto a discussão sobre o ser
humano como ser cultural, debatendo a respeito de duas posturas: a do
etnocentrismo e a do relativismo cultural.
A primeira refere-se a uma postura que temos e que deve ser
evitada, e a segunda, a uma postura metodológica sugerida quando alguém quer
olhar outro povo ou grupo diferente do seu.
Como provocação inicial para o debate, apresentamos a
seguinte frase de Michel de
Montaigne: “[...] cada qual denomina de bárbaro o costume
que não pratica na própria terra”[1].
Essa frase nos mostra que todos nós olhamos para o mundo com os olhos ou as
lentes dados por nossa cultura. Por meio dela, observamos o mundo e avaliamos
os outros. Isso se chama etnocentrismo.
Michel
de Montaigne (1533-1592) foi um escritor francês. Atuou na magistratura e na
política. Sua vida e obra refletem o apreço por debates e questões que envolvem
a tolerância religiosa e o etnocentrismo. Um exemplo disso ocorreu em 1574,
quando, após a Noite de São Bartolomeu – massacre de protestantes por católicos
em Paris –, Montaigne fez no Parlamento de Bordeaux um discurso em prol da
tolerância religiosa, conclamando todos a evitar a violência e estabelecer a
ordem pela força da palavra e das ideias. Seu interesse por relatos de viagem o
levou a encontrar um indígena sul-americano conduzido à Europa, que lhe
inspiraria um capítulo dos seus Ensaios
chamado “Dos canibais”, em que aborda
o etnocentrismo e demonstra sua crítica ao preconceito. No fim da vida,
preferiu a reclusão a fim de terminar seus Ensaios,
que seria seu trabalho central, iniciado em 1572 e que continuou até seu último
ano de vida. No livro, Montaigne discorre sobre praticamente todos os assuntos relevantes
da época.
Como, provavelmente, “etnocentrismo” é uma palavra que você
não conheça e um
termo muito importante, discutamos o que você compreende da
frase de Montaigne: O
que vocês acham que ele quis dizer com isso?
A palavra “bárbaro” pode ter vários significados, como nos
exemplos a seguir:
a) “Nossa, olha só que roupa legal! Ela não é bárbara?”;
b) “O que esse homem fez com os reféns foi um ato bárbaro e
cruel!”.
A primeira conotação do uso do termo tem um sentido
positivo. Já a segunda frase mostra o uso do mesmo termo, mas com uma conotação
negativa.
A
palavra “bárbaro” é de origem greco-latina. Os romanos a usavam para designar
todos os povos não romanos. Com o tempo, essa palavra adquiriu a conotação de
alguém que age de forma errada, imprópria, quase não humana.
Neste caso, bárbaro é alguém que fez algo muito ruim para
as outras pessoas, algo que quase não é considerado humano.
Provavelmente você dirá que isso é próprio do ser humano;
ou, que tem a ver com egoísmo, ou com individualismo; e, ainda, que isso está
relacionado à nossa cultura, pois estranhamos o que é diferente.
Existe um feixe de causas para isso, ou seja, que, por várias
razões, temos tal atitude e que, por isso, todas essas respostas estão certas.
Mas talvez se esquecesse de que uma das razões mais importantes para termos uma
postura etnocêntrica esteja ligada ao medo.
O sentido etimológico da palavra etnocentrismo e abordar o conceito de relativismo
cultural, de acordo com as explicações a seguir, também disponíveis no Caderno
do Aluno, na seção Leitura e análise de texto.
A
frase de Montaigne trata do etnocentrismo:
etno
= palavra grega que significa povo;
centr
= vem de centro;
ismo
= sufixo que designa prática de algo;
Etnocentrismo
é a postura segundo a qual avalia-se
os outros povos a partir da própria cultura. Nesse sentido, todos nós somos
etnocêntricos. Uns mais e outros menos. O problema do etnocentrismo é que ele
não nos permite compreender como os outros pensam, já que, de antemão, eu julgo
os outros conforme os meus padrões, de acordo com os valores e ideias
partilhados pela minha cultura. E isso é um problema quando se quer compreender
o outro, quando se quer pensar sociologicamente.
Logo,
o etnocentrismo é uma postura que devemos evitar. Na Antropologia, há um
recurso metodológico para isso e ele tem a ver com uma atitude mental que os
pesquisadores adotam diante do que é diferente.
O
antropólogo deve tornar exótico o que é familiar e tornar familiar o que é
exótico.
Ou
seja, é preciso assumir uma postura de distanciamento diante de seu modo de
pensar, agir e sentir. Essa postura está ligada ao estranhamento. É tentar
colocar-se no lugar do outro e compreender como ele pensa. Ter essa atitude não
significa deixar de ser quem é, mas aceitar o outro na sua diferença. A essa
postura damos o nome de relativismo
cultural.
O
relativismo cultural é a postura segundo a qual se procura relativizar sua
maneira de agir, pensar e sentir, e, assim, colocar-se no lugar do outro.
“Relativizar” significa estabelecer uma espécie de distanciamento ou
estranhamento diante de seus valores, para conseguir compreender a lógica dos
valores do outro.
Se
quisermos realmente compreender o outro, devemos ter consciência disso e
adotar, na medida do possível, o relativismo como uma postura metodológica que
ajude a nos desvencilhar do etnocentrismo. Essa atitude não é fácil, pois são
poucas as pessoas dispostas a questionar ou a deixar de lado sua maneira de
agir, pensar e sentir, ainda que momentaneamente, para tentar compreender o
outro.
Uma
das razões mais importantes para termos uma postura etnocêntrica está ligada ao
medo. Medo do outro e, acima de tudo, medo
de nós mesmos.
Por
que isso está ligado ao medo?
Porque,
quando dizemos que o outro é inferior, automaticamente nos colocamos em uma
posição de superioridade. E, se somos superiores, somos os corretos, os
melhores. Logo, não precisamos questionar nossa maneira de agir, pensar ou
sentir. Pois, quando olhamos o outro e procuramos, genuinamente, compreendê-lo
na sua diferença, muitas vezes não olhamos somente para esse outro. Olhamos também
para nós mesmos.
E
por que não queremos fazer isso?
Porque
aceitar o outro na sua diferença leva, muitas vezes, a refletir sobre a própria
existência, e nem sempre estamos preparados ou simplesmente não queremos rever
ou repensar nosso ponto de vista. Gostamos de achar que esse ponto de vista é o
único possível, pois assim esquecemos que é somente uma possibilidade, uma
entre outras. Com isso, fugimos da responsabilidade de pensar sobre as escolhas
que fazemos, dizendo que: “não temos escolha”, que “o mundo deve ser assim”,
“sempre foi assim”, que “não há o que mudar” e que o “diferente está sempre
errado”, “é sempre inferior”.
(Elaborado
especialmente para o São Paulo faz escola)
Na discussão sobre etnocentrismo, o antropólogo Claude
Lévi-Strauss pode nos ajudar. As informações expõem um pouco de sua trajetória
e de suas ideias sobre o etnocentrismo e o desenvolvimento das culturas.
Claude Lévi-Strauss (1908-2009) foi um dos mais
importantes antropólogos do século XX. Ainda jovem, em 1934, veio ao Brasil e
ajudou a fundar a Universidade de São Paulo (USP). Ele fez pesquisas em Mato
Grosso com os povos indígenas Bororo e Kadiwéu, entre outros. Quatro anos
depois, foi embora do nosso país e desenvolveu, posteriormente, uma das mais
importantes correntes da Antropologia: o estruturalismo. Em 1952, a pedido da
Unesco, ele escreveu um artigo chamado Raça
e história, em que criticava, entre outros
pontos, a ideia de raça e o etnocentrismo entre os povos.
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Em Raça e história[2], Lévi-Strauss afirmou que a interpretação
e a visão da diversidade varia de cultura para cultura. Para ilustrar essa
discussão, ele usou metáforas, comparando as culturas com os trens, para falar
do etnocentrismo, e o andar do cavalo no jogo de xadrez com o desenvolvimento
das culturas.
As
culturas e os trens
Imagine
que cada cultura é um trem e nós somos os passageiros. Nós olhamos o mundo a
partir do nosso trem.
Mas
os trens seguem em direções opostas, em diversas velocidades. Um viajante verá
de modo diferente um trem que vai em sentido contrário, um trem que ultrapassa
o seu ou outro que segue em uma outra direção. E qual trem podemos observar
melhor a partir de nosso trem? Aquele que segue na mesma direção que o nosso e
na mesma velocidade, ou seja, de forma paralela.
Se
cada cultura é um trem, sabemos que as culturas não caminham todas na mesma
direção, nem na mesma velocidade. Umas caminham mais rápido, outras caminham em
direções quase opostas. As culturas possuem maneiras diferentes de observar o
mundo. Cada uma tem o seu caminho, a sua direção e a sua velocidade. Se uma cultura
nos parece parada, isso ocorre porque não conseguimos compreender o sentido do
seu desenvolvimento.
É
aquela que caminha paralela à nossa que nos permite a melhor observação e que
nos fornece a autoidentificação. Mas quem é que pode dizer qual é a melhor
direção? O caminho mais avançado? Será que o que parece parado para nós está
realmente parado? Como saber?
Na verdade,
com isso Lévi-Strauss quis dizer que é muito difícil para alguém de uma
determinada cultura avaliar alguém de outra cultura. Pois, já que a minha
cultura é como um trem, muitas vezes não consigo enxergar e compreender o que
se passa nos outros trens (nas outras culturas). Isso ocorre porque as culturas
não carregam em si as mesmas preocupações nem os mesmos objetivos. É mais fácil
entender a cultura que mais se parece com a nossa, ou seja, aquela que partilha
dos mesmos interesses e segue na mesma direção. Mas, como as culturas são
diferentes, se muitas vezes não conseguimos compreender uma delas, isso não
ocorre porque ela está parada, ou errada, e sim, porque a direção que ela toma
muitas vezes não faz sentido segundo a nossa lógica de raciocínio, a lógica de
nossa cultura (trem).
As
culturas e o cavalo no jogo de xadrez
Lévi-Strauss
escreveu, ainda, que as culturas se desenvolvem como anda o cavalo no jogo de
xadrez. No jogo de xadrez, cada peça caminha de uma maneira: a torre em linha
reta, o bispo na diagonal e o cavalo em L, ou seja, aos saltos[3].
Logo, se as culturas andam em L, ou aos saltos, elas não andam todas em linha
reta, nem seguem todas a mesma direção. Cada uma segue um sentido e uma linha de
raciocínio que lhe é própria. É equivocado considerar errada e pouco evoluída a
cultura que segue uma direção diferente da nossa, como se todas devessem seguir
a mesma direção, como se todas devessem andar da mesma forma. Cada cultura tem
seus interesses próprios e, assim, um ritmo, uma velocidade e uma direção de
desenvolvimento que são seus. Não andam, ou se desenvolvem, em linha reta.
O
que é mais importante? Para um pigmeu[4],
mais importante do que saber quem descobriu o Brasil, ou quais são os tipos de
clima do mundo, é saber quais plantas são comestíveis e quais são venenosas,
quais podem ser usadas como remédio e quais não podem. Para um brasileiro que
almeja se tornar advogado, mais importante é adquirir os conhecimentos
necessários para entrar na faculdade. Conhecer quais são as plantas venenosas
numa floresta pode não lhe ser de muita utilidade. Logo, o que é importante
saber varia de uma cultura para outra.
(Elaborado
especialmente para o São Paulo faz escola)
Assim, por meio das metáforas usadas por Lévi-Strauss, foi
possível mostrar que as culturas não são só diferentes entre si, mas são também
difíceis de ser compreendidas e avaliadas. Cada uma fornece uma visão de mundo,
uma maneira de observar a realidade, de viver e de pensar. E, se quisermos
realmente compreender o outro, devemos ter consciência disso e adotar, na
medida do possível, o relativismo cultural como uma postura metodológica que
ajude a nos desvencilhar do etnocentrismo.
Questões (responda no google formulários)
1)
Com
base na leitura do texto apresentado, defina:
a) etnocentrismo;
b) relativismo cultural.
2)
Por
que você acha que é tão difícil nos colocarmos no lugar do outro?
3)
Por
que até hoje confundimos diferença com inferioridade?
4)
Por
que ao observar alguém que se veste de modo diferente e tem hábitos diferentes,
a tendência de algumas pessoas é tachá-lo de inferior?
5)
Disserte
sobre as dificuldades de lidar com o etnocentrismo e de adotar uma postura relativista.
6)
Faça
uma redação sobre o medo e sobre como ele pode atrapalhar a nossa vida.
7)
Com
base na leitura do texto, responda o que você acha que Claude Lévi-Strauss quis
dizer com:
a) as culturas são como trens;
b) as culturas se movem assim como anda o
cavalo no jogo de xadrez.
8)
Escrevam,
em uma folha avulsa, um texto dissertativo e argumentativo sobre as relações
entre o medo, o etnocentrismo, o relativismo e as metáforas usadas por Lévi-Strauss,
que descreve “as culturas como trens” e considera que “elas se movem assim como
anda o cavalo no jogo do xadrez”.
9)
Explique
se o uso do termo “bárbaro”, na frase de Montaigne, tem conotação negativa ou
positiva e por quê.
10)
Por
que é tão difícil nos colocarmos no lugar do outro?
11)
Por
que até hoje confundimos diferença com inferioridade?
12)
Por
que ao observar alguém que se veste de modo diferente e tem hábitos diferentes,
a tendência de algumas pessoas é tachá-lo de inferior?
[1]
MONTAIGNE, Michel de. Les Essais, livre I. Chapitre XXX – Des cannibales.
Tradução Stella Christina Schrijnemaekers.
[2] LÉVI-STRAUSS,
Claude. Raça e história. In: Antropologia estrutural (volume
2). Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p.
357-369.
[3]
O cavalo, no jogo de xadrez, anda em
L, ou seja, duas casas para a frente e uma ou para a direita ou para a esquerda,
ou pode andar uma casa para a frente e duas para a esquerda ou para a direita.
[4]
Homem que pertence a uma etnia da
África Central e que apresenta baixa estatura.