sábado, 19 de maio de 2018

As teorias do desenvolvimento: evolucionismo, dualismo e economias periféricas


O Evolucionismo

Quando as ciências humanas se constituíram no século XIX, diversas áreas do conhecimento se organizaram em torno de diferentes objetos e métodos de pesquisa e surgiram a história, a psicologia, a antropologia e a sociologia. Entre essas duas últimas, as fronteiras foram estabelecidas do seguinte modo: à antropologia cabia o estudo das sociedades não europeias e à sociologia, prioritariamente, a análise de sociedades urbano-industriais, como as que existiam no velho continente.

Desse modo, à antropologia coube estudar as relações interétnicas, o conflito intersocietário e as relações coloniais, inicialmente, sob um prisma que defendia e justificava a dominação europeia nos demais continentes em nome de uma superioridade étnica, racial, moral e social dos europeus sobre todos os demais. Inúmeras teorias procuravam mostrar que todas as sociedades alcançariam um dia o grau de desenvolvimento do modelo europeu. Tais teorias foram chamadas evolucionistas, pois pressupunham uma lei geral de desenvolvimento das sociedades mais simples às mais complexas, das sociedades homogêneas às diferenciadas, das agrárias às industriais.

De acordo com elas, a humanidade seria composta de diversas espécies em diferentes etapas de desenvolvimento do processo evolutivo. Assim, cada sociedade poderia ser classificada e inserida em um continuum que ia das mais atrasadas e simples às mais adiantadas, evoluídas e complexas. As sociedades mais simples, ou primitivas, como foram chamadas, correspondiam a estágios inferiores na história evolutiva da humanidade, verdadeiros fósseis vivos de nosso passado.

Continentes inteiros foram vistos como museus propícios ao estudo da nossa diversidade evolutiva e genética. Hoje, parece cada vez mais plausível a ideia de sermos manifestações de um único processo global de evolução, o qual abrange a espécie humana como um todo. Aceita-se que o processo evolutivo humano levou ao aparecimento do Homo sapiens – ocorrido na África há cem mil anos – e que este migrou pelo planeta, diversificando-se em sua aparência e em seus hábitos graças a sua inigualável capacidade de adaptação ao meio. Essas diferenças, entretanto, não são de espécie.

Mesmo os defensores da teoria multirregional – que advogam a tese de que o homem moderno é o resultado da interseção de espécies diferentes de hominídeos, e que com o passar do tempo o Homo erectus especiou-se, ou seja, diferenciou-se fisicamente por influência do meio ambiente, isso explicaria as diferenças regionais observáveis – acreditam que, no decorrer de sua migração pelo planeta, os grupos de Homo sapiens foram se miscigenando, – originando o homem atual, o Homo sapiens sapiens –, dando aos povos hoje existentes grande homogeneidade de composição genética. Inúmeros exames de DNA têm provado que não há diferenças biológicas entre grupos humanos marcados por alguma diferenciação fenotípica.

Ao lado dessas diferenças regionais, passamos por séculos de colonialismo, imperialismo e industrialização do planeta, que resultaram no processo que chamamos de “globalização”. Estamos próximos de constituir uma verdadeira aldeia global – redes econômicas e de informação de âmbito universal interligam os mais distintos povos da Terra, homogeneizando as culturas, os hábitos e as crenças. A troca de influências entre as nações é imensa e até mesmo as diferenças de nacionalidade se mostram cada vez mais questionáveis. Mas, 150 anos atrás, os africanos, os indígenas americanos e os asiáticos foram vistos como essencialmente diferentes dos europeus.

1.1.1   O evolucionismo na sociologia

A sociologia não ficou imune à influência dos princípios evolucionistas. Inúmeros sociólogos procuraram descobrir as leis gerais que ordenavam as transformações e a evolução social, responsáveis por fazer com que formas sociais mais simples fossem passando natural e progressivamente a outras, mais complexas e evoluídas. Émile Durkheim, aplicando esse princípio teórico ao estudo comparado dos diversos modelos europeus de vida social, distinguiu também diversas “espécies” que se diferenciavam umas das outras, umas mais simples, outras mais complexas. Um dos aspectos que as diferenciava era, por exemplo, a complexidade na divisão social do trabalho.

As sociedades mais simples eram aquelas cujas tarefas se encontravam divididas apenas por sexo e idade, enquanto, nas sociedades mais complexas, as atividades produtivas iam paulatinamente se diferenciando segundo outros critérios, como o grau de instrução, por exemplo.

Ferdinand Tönnies foi outro sociólogo que distinguiu nos países europeus duas espécies de formações sociais: a comunidade, em que as relações sociais entre os indivíduos são mais próximas, tendo por base a vida familiar e as relações comunitárias, e a sociedade, em que já se desenvolve a vida urbana, há forte presença do Estado e menor coesão entre os agentes sociais. Dessa forma, esses cientistas identificavam formações sociais “primitivas” e “complexas” e entendiam a história como um processo inexorável e natural que transformaria as sociedades primitivas em complexas.

O marxismo foi a teoria que mais contribuiu para uma crítica eficiente das concepções evolucionistas da antropologia e da sociologia, pelo fato de explicar a vida social como uma totalidade integrada, cujas desigualdades entre as partes são consequências das relações que mantêm entre si e não de sua natureza. Entretanto, resistindo a essa ideia e inspirados pelo evolucionismo, antropólogos e sociólogos procuraram então, por meio de análises comparativas, defender os princípios de superioridade das sociedades europeias.

1.1.2   Crise no modelo evolucionista

Durante o período colonial, quando a Europa dominou os demais continentes, aniquilando a cultura e os modos de vida existentes, impondo o capitalismo e a dependência aos povos conquistados, era possível e necessário para os europeus partir do princípio de que tais relações derivavam de uma superioridade natural. Esse princípio estava na base do desenvolvimento das ciências sociais que surgiram na própria Europa.

Entretanto, à medida que as colônias foram se tornando independentes, adquirindo autonomia e estabelecendo relações comerciais e políticas nas quais figuravam como parceiras, o pressuposto da diferença de natureza entre nações europeias e não europeias ficou sem sustentação. Afinal, em cada uma das novas nações aparecia uma burguesia comercial cujo objetivo era o lucro; havia um Estado reconhecido pelas nações ocidentais, com leis e burocracia criadas à imagem dos países industrializados.

Em tais condições, não se podia mais chamar as recém-criadas nações de “primitivas” ou “selvagens”. Elas não se enquadravam mais nos padrões comparativos criados pelo evolucionismo que estudamos. Por trás dessa semelhança nas instituições políticas e econômicas, porém, as sociedades industrializadas e as de produção agrícola mostravam diferenças significativas. Para explicá-las, surgiu, na sociologia, um novo tipo de evolucionismo, que podemos chamar de desenvolvimentista.

Trata-se de um novo evolucionismo, que não procurava mais as diferenças entre a sociedade europeia e as sociedades arcaicas “condenadas” ao desaparecimento, mas tentava encontrar, nas novas nações, as instituições básicas capazes de garantir a continuidade e a reprodução das relações capitalistas. Alguns estudos, inspirados por essa ideia, chegaram a identificar nas relações mais tradicionais de troca ligadas ao parentesco a “origem” dos comportamentos voltados para o lucro.

As nações que se firmavam como centros de dominação política e econômica passaram a constituir modelos ou estágios superiores aos quais deveria chegar todo e qualquer povo. Entre estas e as sociedades de formas econômicas mais rudimentares, estabelecia-se um continuum a partir do qual as diferentes nações eram classificadas como “desenvolvidas”, “semidesenvolvidas” e “pré-capitalistas”. Essa classificação subsiste até hoje.

1.2 O desenvolvimento segundo etapas de crescimento econômico

William Wilber Rostow, ex-professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e porta-voz da Casa Branca para assuntos exteriores em 1967, é autor de uma das mais difundidas reflexões baseadas nos princípios desenvolvimentistas. Em sua obra Estágios de desenvolvimento econômico, Rostow identifica etapas de desenvolvimento que caracterizam cinco tipos de sociedade.

O primeiro – sociedade tradicional – caracteriza-se por produção limitada, tecnologia baseada em uma ciência pré-newtoniana, elevado grau de subordinação do homem ao ambiente e inadequado aproveitamento dos recursos naturais.

O segundo – sociedade em processo de transição – estágio no qual aparecem as precondições para o desenvolvimento econômico, representa a gestação de atitudes racionais adequadas ao controle e à exploração da natureza.

O terceiro – sociedade em início de desenvolvimento – inclui as sociedades nas quais são ultrapassados os primeiros limites das sociedades tradicionais. Segundo Rostow, nesse período já se percebe investimento de capital na área produtiva, crescimento da manufatura e aparecimento de um sistema político, social e institucional em expansão.

Ele considera que, nesse estágio, já se encontra a base de uma sociedade moderna. O quarto – sociedade em maturação – corresponde ao estágio em que as forças de expansão econômica passam a predominar na sociedade. O quinto – sociedade de produção em massa – é o estágio de desenvolvimento efetivo da produção em bases industriais e científicas e de um aumento significativo do investimento produtivo de capital.

Para sustentar essa classificação, entretanto, o pesquisador tem de desprezar todas as particularidades históricas de cada sociedade; tem de pressupor que todas tiveram uma mesma formação original, aqui chamada de maneira generalizante de “sociedade tradicional”; e que para chegar onde chegaram atravessaram as mesmas etapas de um único processo.

Esse esquematismo ignora também as relações que as nações mantêm umas com as outras, a concorrência que estabelecem entre si e o processo histórico variável e cíclico das nações. A Índia, no século XVII, por exemplo, possuía uma manufatura de seda extremamente desenvolvida, organizada em padrões familiares e domésticos, que foi à fa- lência pelos laços colonialistas estabelecidos com a Inglaterra – que inundou o país com seda produzida industrialmente, oferecida a preços reduzidíssimos.

As manufaturas indianas entraram em decadência, sem qualquer possibilidade de “passarem” de manufaturas a indústrias. Ao contrário, a Índia “passou” de exportadora de seda a importadora de tecidos ingleses, de produtora a consumidora, revertendo o percurso evolucionista proposto por Rostow. A história de cada nação é um processo que, mesmo do ponto de vista tecnológico e econômico, apresenta recuos, retrocessos e alternâncias, contradizendo qualquer teoria que proponha um movimento linear, lento e ascendente em direção ao desenvolvimento.

Além disso, uma nação ou mesmo uma região não forma um todo coeso e integrado, podendo uma parte apresentar desenvolvimento e outra decadência. Na história das sociedades há oscilações verticais e horizontais, no tempo e no espaço, muitas delas provocadas por forças externas. O Nordeste brasileiro, por exemplo, alcançou grande pujança na produção do açúcar, no século XVII, mas entrou em decadência ao ter de enfrentar a concorrência do açúcar antilhano, produzido em mol des tecnológicos e econômicos muito semelhantes ao nosso. Em consequência, viu desaparecer sua prosperidade.

Não houve, como propunham os desenvolvimentistas, nenhuma “passagem” ou transformação de uma estrutura produtiva em outra. Percebe-se, desse modo, que não são apenas as possibilidades internas de investimento, racionalidade e crescimento das técnicas produtivas de uma região ou nação que determinam o florescimento ou a falência de um ramo da produção.

1.2.1   Entraves ao desenvolvimento:  o tradicionalismo e a questão racial

Na base dos estudos como os de Rostow, acha-se a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo e da produção em massa é uma meta histórica, tal como tinham sido a civilização europeia e a mecanização para o evolucionismo do século XIX. Essa meta seria alcançada por meio de um lento mas inevitável movimento de mudança social. Cada estágio econômico representaria o grau de avanço de uma sociedade em relação à meta almejada. 

Da ideia de que todas as nações visam ao mesmo objetivo e dependem apenas de sua organização interna para alcançá-lo decorre a teoria que atribui os reveses nessa marcha a “entraves”, ou seja, às dificuldades advindas de uma constituição inadequada, tanto dos recursos naturais quanto dos agentes econômicos.

Um desses entraves seria o clientelismo – tipo de relação existente entre os membros de uma sociedade, dando prioridade às relações de parentesco e amizade em detrimento de relações mais impessoais, mas eficientes na geração de lucro. Fazendo prevalecer essas formas tradicionais de relação entre as pessoas, essas sociedades tradicionalistas, apegadas demais às antigas formas de existência e subsistência, não conseguiriam se desenvolver.

Empresas familiares, em que os parentes dividem entre si os cargos mais elevados independentemente de sua competência, seriam exemplos desse tradicionalismo. Já as sociedades anônimas e de capital aberto seriam típicas de uma atitude mais racional e produtiva. O estudo do desenvolvimento do Japão é suficiente para colocar por terra essa ideia. Esse país foi capaz de atingir alto grau de desenvolvimento econômico sem abrir mão de suas relações tradicionais que, ao contrário, em muito ajudaram seu progresso.

No estudo das dificuldades econômicas das sociedades latino-americanas, encontramos ainda outros equívocos, como a visão preconceituosa que atribui o nosso pouco desenvolvimento à composição da população e, em especial, às características étnicas e culturais dos povos nativos. O índio brasileiro, por exemplo, foi considerado “preguiçoso” e “pouco apropriado” ao trabalho sedentário. No entanto, nessa análise, desprezou-se completamente o extermínio e a escravidão dos indígenas, bem como a redução da população a poucos milhares de indivíduos que sequer participam das atividades produtivas lucrativas.

Como podiam ser responsáveis pelo “atraso” de instituições das quais nunca participaram? Os negros também foram responsabilizados pelo atraso do continente, embora muito de toda a riqueza das colônias sul-americanas, principalmente no Brasil e Caribe, tivesse vindo do trabalho dos escravos negros. Afirmava-se que os africanos, como de resto todos os povos tropicais, eram pouco afeitos às atividades realmente produtivas e incapazes de atingir a “civilização”.

As teorias desenvolvimentistas voltadas a explicar as razões do subdesenvolvimento, na verdade, tomavam por causa aquilo que é, de fato, efeito da exploração colonial capitalista. Buscando justificativas nas condições internas dos países “subdesenvolvidos”, capazes de explicar o seu atraso, lançou-se mão de argumentos preconceituosos e racistas. Raça, tradição e até mesmo a nacionalidade do povo colonizador foram explicações aceitas. A origem ibérica do colonizador da América Latina – menos “desenvolvido” que o colonizador anglo-saxão – também foi apontada como causa do atraso e do “subdesenvolvimento”.

1.2.2   A história e o desenvolvimento

Vemos, pois, que as teorias que estabeleceram estágios de desenvolvimento não consideraram as relações internacionais instauradas pelo capitalismo, nem o processo de colonização nem a história particular de cada povo. A história, sob essa perspectiva, retoma o princípio evolucionista proposto pelos positivistas.

As sociedades perdem sua originalidade e especificidade na medida em que a lei da evolução e o desenvolvimentismo é que comandam a transformação social. Os obstáculos ao livre curso desse movimento ascendente em direção ao capitalismo industrial só encontrariam explicação nos aspectos internos, anacrônicos ou “disfuncionais” das sociedades tradicionais.

1.3 A abordagem dualista do desenvolvimento

Outra tentativa de explicar o subdesenvolvimento surgiu com as chamadas teorias dualistas, que identificam em certos continentes, países ou regiões uma formação peculiar na qual coexistem duas estruturas distintas. Uma, “desenvolvida”, que apresenta crescimento industrial, expansão urbana, sistema de comunicações amplo e diversificado, alta produtividade e avanço tecnológico. 

A outra, “atrasada”, na qual encontramos cidades com pequena área e população reduzida, produção eminentemente agrária, níveis de renda baixos, produtividade insuficiente e dispersão demográfica. Elias Gannagé, um dos pesquisadores dualistas, assim define o fenômeno:

“Por dualismo econômico entendemos toda cisão, toda justaposição, todo hiato que se estabelece seja entre uma região e o resto do território, seja entre dois sistemas ou setores, seja entre grupos sociais no interior de uma área espacial determinada, tal como a nação. Os pontos de contato são limitados; os nexos frequentemente rompidos e as transmissões frequentemente imperfeitas.” (GANNAGÉ, Elias. Économie du développement. Apud Luiz Pereira,  Ensaios de sociologia do desenvolvimento. São Paulo: Pioneira, 1970. pp. 54­-55).

De acordo com essa definição, o dualismo pode se manifestar entre regiões de um mesmo país ou entre setores de uma mesma economia nacional. No Brasil, por exemplo, o dualismo estaria presente na diferença de desenvolvimento das regiões Nordeste e Sudeste. Poderia ser encontrado, ainda, numa mesma área territorial em que coexistem formas econômicas arcaicas e avançadas, como na região metropolitana de Salvador, onde ao lado da pesca individual e itinerante encontramos o complexo industrial de Aratu.

Nos países agroexportadores, o dualismo se manifestaria entre setores da economia – na coexistência de uma agricultura altamente mecanizada, voltada para a exportação, e uma incipiente produção manufatureira. Podemos nos deparar com o dualismo, ainda, quando uma mesma população se dedica ao trabalho assalariado e ao trabalho autônomo de subsistência.

Algumas cidades brasileiras voltadas ao turismo apresentam essa dicotomia: elevado crescimento de empresas imobiliárias e construtoras ao lado de práticas tradicionais de sobrevivência, como o comércio ambulante de produtos artesanais e alimentos.

Élias Gannagé considera subdesenvolvido, portanto, o país “caracterizado pela coexistência de dois sistemas econômicos e sociais, totalmente diferentes, cuja interação dos elementos estruturais é o comportamento normal” (p. 55).

1.3.1   O conceito de periferia

Assim como os desenvolvimentistas buscam, nas sociedades “subdesenvolvidas”, os fatores que retardariam o desenvolvimento, os dualistas procuram os obstáculos à absorção dos setores “atrasados” pelos “desenvolvidos”. Querem responder a perguntas do seguinte tipo: por que em determinadas sociedades os indivíduos continuam utilizando o trabalho não assalariado? Por que a indústria não cresce de maneira a estimular os indivíduos ao trabalho produtivo? Por que as oligarquias agrárias continuam a manter políticas econômicas que não favorecem o desenvolvimento industrial?

Para a abordagem dualista, entretanto, o problema não se encontra na constituição étnica, cultural ou racial da população, mas na condução de políticas administrativas e econômicas, no comportamento das camadas dirigentes, na falta de estímulo para o progresso, na má orientação do governo. Tais obstáculos impedem o bom aproveitamento das forças produtivas e acabam estimulando uma economia “periférica”, isto é, setores econômicos tradicionais, de baixa produtividade, que se desenvolvem à parte ou na “periferia” dos setores “desenvolvidos”.

O conceito de periferia diz respeito ao que, em uma sociedade, é secundário, irrelevante e até anormal em relação ao que é central, importante, desenvolvido. É um conceito usado apenas para regiões e setores “atrasados” no interior de uma sociedade ou nação “subdesenvolvida”. Muitos cientistas sociais, entretanto, empregam a expressão “países periféricos” para se referir às nações do dito Terceiro Mundo. Gunnar Myrdal e Wright Mills desenvolvem pesquisas enfatizando o caráter dual das sociedades “subdesenvolvidas”. 

Jacques Lambert difundiu essas análises de caráter dualista em seu famoso livro Os dois Brasis. A diferença entre esses estudos está na forma de conceber as relações que a região ou o setor “desenvolvido” mantêm com o setor tradicional, “atrasado” ou “periférico”. Para alguns, essas relações são de simples coexistência durante um período de transição, que resultará na extinção do tradicional e no pleno desenvolvimento do capitalismo industrial. Para outros, as relações são de dominação, sendo prioritário o setor “desenvolvido”, para o qual se orienta toda a ação política e todo o investimento econômico.

1.3.2   O conceito de marginalidade

Outro conceito que surgiu na sociologia para designar os setores “não desenvolvidos” ou as regiões “atrasadas” foi o de “marginalidade”. Segundo Bresser-Pereira:

“O setor tradicional ou marginal é aquele que fica excluído dos processos de desenvolvimento tecnológico e de rápido aumento da produtividade que caracterizam o modelo [capitalista dominante].” (BRESSER ­PEREIRA, Luiz Carlos. A economia do subdesenvolvimento industrializado. In: Estudos Cebrap, 14, p. 38).

O autor afirma que o conceito de marginalidade não se refere a partes da sociedade em estágio pré-capitalista de produção nem a uma fase de transição para o capitalismo, mas a setores constitutivos da sociedade que demonstram tradicionalismo em suas relações econômicas, políticas e sociais como resultado das relações internacionais desiguais em que a industrialização dos países “subdesenvolvidos” ocorre.

1.4 A desigualdade como princípio

A principal crítica às teorias dualistas é que elas não salientam o fato de que a coexistência entre “atraso” e “desenvolvimento”, “arcaísmo” e “modernidade” não se explica em termos de uma fase passageira ou temporária dos países em desenvolvimento, nem pelas características raciais, étnicas e culturais das sociedades “periféricas”, nem mesmo pelas deficiências do planejamento político e econômico do Estado.

A coexistência entre “tradicional” e “moderno” se explica pelas relações de dependência que essas sociedades mantêm com o capitalismo internacional. Desde a conquista de sua independência, as novas nações estiveram envolvidas com a transformação de sua estrutura tradicional para torná-la capaz de implementar os acordos econômicos internacionais. Como mostra Peter Worsley em relação à África, a independência transformou o mundo tribal, em função do estabelecimento de novas fronteiras políticas – que não são étnicas nem culturais –, de uma língua dominante e de um novo Estado, aos quais o antigo “tribalismo” deve agora se submeter.

As antigas relações se transformaram, a fim de que pudessem se inserir no novo quadro das relações políticas e econômicas internacionais. Há um processo de redefinição do antigo e do tradicional, que agora se torna “novo”. Portanto não se pode falar em sociedades duais, mas sim em sociedades plurais. São nações formadas sobre diferenças étnicas, culturais e econômicas recriadas em função de novos objetivos nacionais e internacionais. Segundo Pablo Gonzáles Casanova e Rodolfo Stavenhagen, trata-se do estabelecimento de relações de dominação e exploração inter-regionais e intersetoriais, a que deram o nome de “colonialismo interno”.

O setor, a região ou o grupo a que se dá o nome de atrasado, subdesenvolvido, marginal ou periférico nada mais é do que o setor que, em vista dos objetivos nacionais e dos contratos assumidos, é excluído dos planos de desenvolvimento. E, mantendo-se fora dos planos de expansão econômica, sobrevive apelando às formas tradicionais de vida, recriadas para que a sociedade como um todo não entre em colapso ou falência.

Estudando as diversas nações do chamado Terceiro Mundo, fica claro que:

1. As regiões, populações e setores identificáveis como subdesenvolvidos, arcaicos, tradicionais ou atrasados são parte integrante das novas nações, o que significa que não estão em processo de transformação para formas sociais e econômicas “adiantadas” ou “evoluídas”.

2. As regiões ou os setores “atrasados” são dominados pelo setor ou região capitalista desenvolvido, o qual se impõe nos processos de independência como representante de toda a nação.

3. Os setores ou regiões “atrasados” tendem a permanecer como tais, desde que assegurem o desenvolvimento do setor dominante, fornecendo mão de obra barata por meio de migrações internas e imigrações ou fornecendo alimentos resultantes de práticas agrícolas tradicionais, ou mesmo aumentando o mercado interno, compondo uma população de consumidores potenciais.

4. As formas tradicionais de vida (economia de subsistência, artesanato, subemprego etc.) tendem a desaparecer quando não representam mais nenhum tipo de fluxo de capital ou mão de obra, como as sociedades tribais brasileiras, em processo de extinção.

5. Os setores “atrasados” são remanescentes de um processo de exploração colonialista. Assim como contribuíram para a acumulação de capital nas metrópoles, continuam possibilitando o enriquecimento, quer das áreas ou dos setores “desenvolvidos”, quer das nações econômica e politicamente mais poderosas, com as quais mantêm estreitos vínculos econômicos.

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