O Evolucionismo
Quando as ciências humanas se
constituíram no século XIX, diversas áreas do conhecimento se organizaram em
torno de diferentes objetos e métodos de pesquisa e surgiram a história, a
psicologia, a antropologia e a sociologia. Entre essas duas últimas, as
fronteiras foram estabelecidas do seguinte modo: à antropologia cabia o estudo
das sociedades não europeias e à sociologia, prioritariamente, a análise de
sociedades urbano-industriais, como as que existiam no velho continente.
Desse
modo, à antropologia coube estudar as relações interétnicas, o conflito
intersocietário e as relações coloniais, inicialmente, sob um prisma que
defendia e justificava a dominação europeia nos demais continentes em nome de
uma superioridade étnica, racial, moral e social dos europeus sobre todos os
demais. Inúmeras teorias procuravam mostrar que todas as sociedades alcançariam
um dia o grau de desenvolvimento do modelo europeu. Tais teorias foram chamadas
evolucionistas, pois pressupunham uma lei geral de desenvolvimento das
sociedades mais simples às mais complexas, das sociedades homogêneas às
diferenciadas, das agrárias às industriais.
De acordo com elas, a humanidade seria
composta de diversas espécies em diferentes etapas de desenvolvimento do
processo evolutivo. Assim, cada sociedade poderia ser classificada e inserida
em um continuum que ia das mais atrasadas e simples às mais adiantadas,
evoluídas e complexas. As sociedades mais simples, ou primitivas, como foram
chamadas, correspondiam a estágios inferiores na história evolutiva da
humanidade, verdadeiros fósseis vivos de nosso passado.
Continentes inteiros
foram vistos como museus propícios ao estudo da nossa diversidade evolutiva e
genética. Hoje, parece cada vez mais plausível a ideia de sermos manifestações
de um único processo global de evolução, o qual abrange a espécie humana como
um todo. Aceita-se que o processo evolutivo humano levou ao aparecimento do
Homo sapiens – ocorrido na África há cem mil anos – e que este migrou pelo
planeta, diversificando-se em sua aparência e em seus hábitos graças a sua
inigualável capacidade de adaptação ao meio. Essas diferenças, entretanto, não
são de espécie.
Mesmo os defensores da teoria multirregional – que advogam a
tese de que o homem moderno é o resultado da interseção de espécies diferentes
de hominídeos, e que com o passar do tempo o Homo erectus especiou-se, ou seja,
diferenciou-se fisicamente por influência do meio ambiente, isso explicaria as diferenças
regionais observáveis – acreditam que, no decorrer de sua migração pelo
planeta, os grupos de Homo sapiens foram se miscigenando, – originando o homem
atual, o Homo sapiens sapiens –, dando aos povos hoje existentes grande
homogeneidade de composição genética. Inúmeros exames de DNA têm provado que
não há diferenças biológicas entre grupos humanos marcados por alguma
diferenciação fenotípica.
Ao lado dessas diferenças regionais, passamos por
séculos de colonialismo, imperialismo e industrialização do planeta, que
resultaram no processo que chamamos de “globalização”. Estamos próximos de
constituir uma verdadeira aldeia global – redes econômicas e de informação de
âmbito universal interligam os mais distintos povos da Terra, homogeneizando as
culturas, os hábitos e as crenças. A troca de influências entre as nações é
imensa e até mesmo as diferenças de nacionalidade se mostram cada vez mais questionáveis. Mas, 150 anos
atrás, os africanos, os indígenas americanos e os asiáticos foram vistos como
essencialmente diferentes dos europeus.
1.1.1 O
evolucionismo na sociologia
A sociologia não ficou imune à
influência dos princípios evolucionistas. Inúmeros sociólogos procuraram
descobrir as leis gerais que ordenavam as transformações e a evolução social,
responsáveis por fazer com que formas sociais mais simples fossem passando
natural e progressivamente a outras, mais complexas e evoluídas. Émile
Durkheim, aplicando esse princípio teórico ao estudo comparado dos diversos
modelos europeus de vida social, distinguiu também diversas “espécies” que se
diferenciavam umas das outras, umas mais simples, outras mais complexas. Um dos
aspectos que as diferenciava era, por exemplo, a complexidade na divisão social
do trabalho.
As sociedades mais simples eram aquelas cujas tarefas se
encontravam divididas apenas por sexo e idade, enquanto, nas sociedades mais
complexas, as atividades produtivas iam paulatinamente se diferenciando segundo
outros critérios, como o grau de instrução, por exemplo.
Ferdinand Tönnies foi
outro sociólogo que distinguiu nos países europeus duas espécies de formações
sociais: a comunidade, em que as relações sociais entre os indivíduos são mais
próximas, tendo por base a vida familiar e as relações comunitárias, e a
sociedade, em que já se desenvolve a vida urbana, há forte presença do Estado e
menor coesão entre os agentes sociais. Dessa forma, esses cientistas
identificavam formações sociais “primitivas” e “complexas” e entendiam a
história como um processo inexorável e natural que transformaria as sociedades
primitivas em complexas.
O marxismo foi a teoria que mais contribuiu para uma
crítica eficiente das concepções evolucionistas da antropologia e da
sociologia, pelo fato de explicar a vida social como uma totalidade integrada,
cujas desigualdades entre as partes são consequências das relações que mantêm
entre si e não de sua natureza. Entretanto, resistindo a essa ideia e
inspirados pelo evolucionismo, antropólogos e sociólogos procuraram então, por
meio de análises comparativas, defender os princípios de superioridade das
sociedades europeias.
1.1.2 Crise
no modelo evolucionista
Durante o período colonial, quando a
Europa dominou os demais continentes, aniquilando a cultura e os modos de vida
existentes, impondo o capitalismo e a dependência aos povos conquistados, era
possível e necessário para os europeus partir do princípio de que tais relações
derivavam de uma superioridade natural. Esse princípio estava na base do
desenvolvimento das ciências sociais que surgiram na própria Europa.
Entretanto, à medida que as colônias foram se tornando independentes,
adquirindo autonomia e estabelecendo relações comerciais e políticas nas quais
figuravam como parceiras, o pressuposto da diferença de natureza entre nações
europeias e não europeias ficou sem sustentação. Afinal, em cada uma das novas
nações aparecia uma burguesia comercial cujo objetivo era o lucro; havia um
Estado reconhecido pelas nações ocidentais, com leis e burocracia criadas à
imagem dos países industrializados.
Em tais condições, não se podia mais chamar
as recém-criadas nações de “primitivas” ou “selvagens”. Elas não se enquadravam
mais nos padrões comparativos criados pelo evolucionismo que estudamos. Por
trás dessa semelhança nas instituições políticas e econômicas, porém, as
sociedades industrializadas e as de produção agrícola mostravam diferenças
significativas. Para explicá-las, surgiu, na sociologia, um novo tipo de
evolucionismo, que podemos chamar de desenvolvimentista.
Trata-se de um novo
evolucionismo, que não procurava mais as diferenças entre a sociedade europeia
e as sociedades arcaicas “condenadas” ao desaparecimento, mas tentava
encontrar, nas novas nações, as instituições básicas capazes de garantir a
continuidade e a reprodução das relações capitalistas. Alguns estudos,
inspirados por essa ideia, chegaram a identificar nas relações mais tradicionais
de troca ligadas ao parentesco a “origem” dos comportamentos voltados para o
lucro.
As nações que se firmavam como centros de dominação política e econômica
passaram a constituir modelos ou estágios superiores aos quais deveria chegar
todo e qualquer povo. Entre estas e as sociedades de formas econômicas mais
rudimentares, estabelecia-se um continuum a partir do qual as diferentes nações
eram classificadas como “desenvolvidas”, “semidesenvolvidas” e
“pré-capitalistas”. Essa classificação subsiste até hoje.
1.2 O desenvolvimento
segundo etapas de crescimento econômico
William Wilber Rostow, ex-professor do
Instituto de Tecnologia de Massachusetts e porta-voz da Casa Branca para
assuntos exteriores em 1967, é autor de uma das mais difundidas reflexões baseadas
nos princípios desenvolvimentistas. Em sua obra Estágios de desenvolvimento
econômico, Rostow identifica etapas de desenvolvimento que caracterizam cinco
tipos de sociedade.
O primeiro – sociedade tradicional – caracteriza-se por
produção limitada, tecnologia baseada em uma ciência pré-newtoniana, elevado
grau de subordinação do homem ao ambiente e inadequado aproveitamento dos
recursos naturais.
O segundo – sociedade em processo de transição – estágio no
qual aparecem as precondições para o desenvolvimento econômico, representa a
gestação de atitudes racionais adequadas ao controle e à exploração da
natureza.
O terceiro – sociedade em início de desenvolvimento – inclui as
sociedades nas quais são ultrapassados os primeiros limites das sociedades
tradicionais. Segundo Rostow, nesse período já se percebe investimento de
capital na área produtiva, crescimento da manufatura e aparecimento de um
sistema político, social e institucional em expansão.
Ele considera que, nesse
estágio, já se encontra a base de uma sociedade moderna. O quarto – sociedade
em maturação – corresponde ao estágio em que as forças de expansão econômica
passam a predominar na sociedade. O quinto – sociedade de produção em massa – é
o estágio de desenvolvimento efetivo da produção em bases industriais e
científicas e de um aumento significativo do investimento produtivo de capital.
Para sustentar essa classificação, entretanto, o pesquisador tem de desprezar
todas as particularidades históricas de cada sociedade; tem de pressupor que
todas tiveram uma mesma formação original, aqui chamada de maneira
generalizante de “sociedade tradicional”; e que para chegar onde chegaram
atravessaram as mesmas etapas de um único processo.
Esse esquematismo ignora
também as relações que as nações mantêm umas com as outras, a concorrência que
estabelecem entre si e o processo histórico variável e cíclico das nações. A
Índia, no século XVII, por exemplo, possuía uma manufatura de seda extremamente
desenvolvida, organizada em padrões familiares e domésticos, que foi à fa-
lência pelos laços colonialistas estabelecidos com a Inglaterra – que inundou o
país com seda produzida industrialmente, oferecida a preços reduzidíssimos.
As
manufaturas indianas entraram em decadência, sem qualquer possibilidade de
“passarem” de manufaturas a indústrias. Ao contrário, a Índia “passou” de
exportadora de seda a importadora de tecidos ingleses, de produtora a
consumidora, revertendo o percurso evolucionista proposto por Rostow. A
história de cada nação é um processo que, mesmo do ponto de vista tecnológico e
econômico, apresenta recuos, retrocessos e alternâncias, contradizendo qualquer
teoria que proponha um movimento linear, lento e ascendente em direção ao
desenvolvimento.
Além disso, uma nação ou mesmo uma região não forma um todo
coeso e integrado, podendo uma parte apresentar desenvolvimento e outra
decadência. Na história das sociedades há oscilações verticais e horizontais,
no tempo e no espaço, muitas delas provocadas por forças externas. O Nordeste
brasileiro, por exemplo, alcançou grande pujança na produção do açúcar, no século XVII, mas
entrou em decadência ao ter de enfrentar a concorrência do açúcar antilhano,
produzido em mol des tecnológicos e econômicos muito semelhantes ao nosso. Em
consequência, viu desaparecer sua prosperidade.
Não houve, como propunham os
desenvolvimentistas, nenhuma “passagem” ou transformação de uma estrutura
produtiva em outra. Percebe-se, desse modo, que não são apenas as
possibilidades internas de investimento, racionalidade e crescimento das
técnicas produtivas de uma região ou nação que determinam o florescimento ou a
falência de um ramo da produção.
1.2.1 Entraves
ao desenvolvimento: o tradicionalismo e
a questão racial
Na base dos estudos como os de Rostow,
acha-se a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo e da produção em massa
é uma meta histórica, tal como tinham sido a civilização europeia e a
mecanização para o evolucionismo do século XIX. Essa meta seria alcançada por
meio de um lento mas inevitável movimento de mudança social. Cada estágio
econômico representaria o grau de avanço de uma sociedade em relação à meta
almejada.
Da ideia de que todas as nações visam ao mesmo objetivo e dependem
apenas de sua organização interna para alcançá-lo decorre a teoria que atribui
os reveses nessa marcha a “entraves”, ou seja, às dificuldades advindas de uma
constituição inadequada, tanto dos recursos naturais quanto dos agentes
econômicos.
Um desses entraves seria o clientelismo – tipo de relação existente
entre os membros de uma sociedade, dando prioridade às
relações de parentesco e amizade em detrimento de relações mais impessoais, mas
eficientes na geração de lucro. Fazendo prevalecer essas formas tradicionais de
relação entre as pessoas, essas sociedades tradicionalistas, apegadas demais às
antigas formas de existência e subsistência, não conseguiriam se desenvolver.
Empresas familiares, em que os parentes dividem entre si os cargos mais
elevados independentemente de sua competência, seriam exemplos desse
tradicionalismo. Já as sociedades anônimas e de capital aberto seriam típicas
de uma atitude mais racional e produtiva. O estudo do desenvolvimento do Japão
é suficiente para colocar por terra essa ideia. Esse país foi capaz de atingir
alto grau de desenvolvimento econômico sem abrir mão de suas relações
tradicionais que, ao contrário, em muito ajudaram seu progresso.
No estudo das
dificuldades econômicas das sociedades latino-americanas, encontramos ainda
outros equívocos, como a visão preconceituosa que atribui o nosso pouco
desenvolvimento à composição da população e, em especial, às características
étnicas e culturais dos povos nativos. O índio brasileiro, por exemplo, foi
considerado “preguiçoso” e “pouco apropriado” ao trabalho sedentário. No
entanto, nessa análise, desprezou-se completamente o extermínio e a escravidão
dos indígenas, bem como a redução da população a poucos milhares de indivíduos
que sequer participam das atividades produtivas lucrativas.
Como podiam ser
responsáveis pelo “atraso” de instituições das quais nunca participaram? Os
negros também foram responsabilizados pelo atraso do continente, embora muito
de toda a riqueza das colônias sul-americanas, principalmente no Brasil e
Caribe, tivesse vindo do trabalho dos escravos negros. Afirmava-se que os
africanos, como de resto todos os povos tropicais, eram pouco afeitos às
atividades realmente produtivas e incapazes de atingir a “civilização”.
As teorias desenvolvimentistas voltadas
a explicar as razões do subdesenvolvimento, na verdade, tomavam por causa
aquilo que é, de fato, efeito da exploração colonial capitalista. Buscando
justificativas nas condições internas dos países “subdesenvolvidos”, capazes de
explicar o seu atraso, lançou-se mão de argumentos preconceituosos e racistas.
Raça, tradição e até mesmo a nacionalidade do povo colonizador foram
explicações aceitas. A origem ibérica do colonizador da América Latina – menos
“desenvolvido” que o colonizador anglo-saxão – também foi apontada como causa
do atraso e do “subdesenvolvimento”.
1.2.2 A
história e o desenvolvimento
Vemos, pois, que as teorias que
estabeleceram estágios de desenvolvimento não consideraram as relações
internacionais instauradas pelo capitalismo, nem o processo de colonização nem
a história particular de cada povo. A história, sob essa perspectiva, retoma o
princípio evolucionista proposto pelos positivistas.
As sociedades perdem sua
originalidade e especificidade na medida em que a lei da evolução e o
desenvolvimentismo é que comandam a transformação social. Os obstáculos ao
livre curso desse movimento ascendente em direção ao capitalismo industrial só
encontrariam explicação nos aspectos internos, anacrônicos ou “disfuncionais”
das sociedades tradicionais.
1.3 A abordagem
dualista do desenvolvimento
Outra tentativa de explicar o
subdesenvolvimento surgiu com as chamadas teorias dualistas, que identificam em
certos continentes, países ou regiões uma formação peculiar na qual coexistem
duas estruturas distintas. Uma, “desenvolvida”, que apresenta crescimento
industrial, expansão urbana, sistema de comunicações amplo e diversificado,
alta produtividade e avanço tecnológico.
A outra, “atrasada”, na qual
encontramos cidades com pequena área e população reduzida, produção
eminentemente agrária, níveis de renda baixos, produtividade insuficiente e
dispersão demográfica. Elias Gannagé, um dos pesquisadores dualistas, assim
define o fenômeno:
“Por dualismo econômico entendemos toda
cisão, toda justaposição, todo hiato que se estabelece seja entre uma região e
o resto do território, seja entre dois sistemas ou setores, seja entre grupos
sociais no interior de uma área espacial determinada, tal como a nação. Os
pontos de contato são limitados; os nexos frequentemente rompidos e as
transmissões frequentemente imperfeitas.” (GANNAGÉ, Elias. Économie du
développement. Apud Luiz Pereira,
Ensaios de sociologia do desenvolvimento. São Paulo: Pioneira, 1970. pp.
54-55).
De acordo com essa definição, o
dualismo pode se manifestar entre regiões de um mesmo país ou entre setores de
uma mesma economia nacional. No Brasil, por exemplo, o dualismo estaria
presente na diferença de desenvolvimento das regiões Nordeste e Sudeste.
Poderia ser encontrado, ainda, numa mesma área territorial em que coexistem
formas econômicas arcaicas e avançadas, como na região metropolitana de
Salvador, onde ao lado da pesca individual e itinerante encontramos o complexo
industrial de Aratu.
Nos países agroexportadores, o dualismo se manifestaria
entre setores da economia – na coexistência de uma agricultura altamente
mecanizada, voltada para a exportação, e uma incipiente produção manufatureira.
Podemos nos deparar com o dualismo, ainda, quando uma mesma população se dedica
ao trabalho assalariado e ao trabalho autônomo de subsistência.
Algumas cidades
brasileiras voltadas ao turismo apresentam essa dicotomia: elevado crescimento
de empresas imobiliárias e construtoras ao lado de práticas tradicionais de
sobrevivência, como o comércio ambulante de produtos artesanais e alimentos.
Élias Gannagé considera
subdesenvolvido, portanto, o país “caracterizado pela coexistência de dois
sistemas econômicos e sociais, totalmente diferentes, cuja interação dos
elementos estruturais é o comportamento normal” (p. 55).
1.3.1 O
conceito de periferia
Assim como os desenvolvimentistas
buscam, nas sociedades “subdesenvolvidas”, os fatores que retardariam o
desenvolvimento, os dualistas procuram os obstáculos à absorção dos setores
“atrasados” pelos “desenvolvidos”. Querem responder a perguntas do seguinte
tipo: por que em determinadas sociedades os indivíduos continuam utilizando o
trabalho não assalariado? Por que a indústria não cresce de maneira a estimular
os indivíduos ao trabalho produtivo? Por que as oligarquias agrárias continuam
a manter políticas econômicas que não favorecem o desenvolvimento industrial?
Para a abordagem dualista, entretanto, o problema não se encontra na
constituição étnica, cultural ou racial da população, mas na condução de
políticas administrativas e econômicas, no comportamento das camadas
dirigentes, na falta de estímulo para o progresso, na má orientação do governo.
Tais obstáculos impedem o bom aproveitamento das forças produtivas e acabam
estimulando uma economia “periférica”, isto é, setores econômicos tradicionais,
de baixa produtividade, que se desenvolvem à parte ou na “periferia” dos
setores “desenvolvidos”.
O conceito de periferia diz respeito ao que, em uma
sociedade, é secundário, irrelevante e até anormal em relação ao que é central,
importante, desenvolvido. É um conceito usado apenas para regiões e setores
“atrasados” no interior de uma sociedade ou nação “subdesenvolvida”. Muitos
cientistas sociais, entretanto, empregam a expressão “países periféricos” para
se referir às nações do dito Terceiro Mundo. Gunnar Myrdal e Wright Mills
desenvolvem pesquisas enfatizando o caráter dual das sociedades
“subdesenvolvidas”.
Jacques Lambert difundiu essas análises de caráter dualista
em seu famoso livro Os dois Brasis. A diferença entre esses estudos está na
forma de conceber as relações que a região ou o setor “desenvolvido” mantêm com
o setor tradicional, “atrasado” ou “periférico”. Para alguns, essas relações
são de simples coexistência durante um período de transição, que resultará na
extinção do tradicional e no pleno desenvolvimento do capitalismo industrial.
Para outros, as relações são de dominação, sendo prioritário o setor
“desenvolvido”, para o qual se orienta toda a ação política e todo o
investimento econômico.
1.3.2 O
conceito de marginalidade
Outro conceito que surgiu na sociologia
para designar os setores “não desenvolvidos” ou as regiões “atrasadas” foi o de
“marginalidade”. Segundo Bresser-Pereira:
“O setor tradicional ou marginal é
aquele que fica excluído dos processos de desenvolvimento tecnológico e de
rápido aumento da produtividade que caracterizam o modelo [capitalista
dominante].” (BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A
economia do subdesenvolvimento industrializado. In: Estudos Cebrap, 14, p. 38).
O autor afirma que o conceito de
marginalidade não se refere a partes da sociedade em estágio pré-capitalista de
produção nem a uma fase de transição para o capitalismo, mas a setores
constitutivos da sociedade que demonstram tradicionalismo em suas relações
econômicas, políticas e sociais como resultado das relações internacionais
desiguais em que a industrialização dos países “subdesenvolvidos” ocorre.
1.4 A desigualdade
como princípio
A principal crítica às teorias
dualistas é que elas não salientam o fato de que a coexistência entre “atraso”
e “desenvolvimento”, “arcaísmo” e “modernidade” não se explica em termos de uma
fase passageira ou temporária dos países em desenvolvimento, nem pelas
características raciais, étnicas e culturais das sociedades “periféricas”, nem
mesmo pelas deficiências do planejamento político e econômico do Estado.
A
coexistência entre “tradicional” e “moderno” se explica pelas relações de
dependência que essas sociedades mantêm com o capitalismo internacional. Desde
a conquista de sua independência, as novas nações estiveram envolvidas com a
transformação de sua estrutura tradicional para torná-la capaz de implementar
os acordos econômicos internacionais. Como mostra Peter Worsley em relação à
África, a independência transformou o mundo tribal, em função do
estabelecimento de novas fronteiras políticas – que não são étnicas nem
culturais –, de uma língua dominante e de um novo Estado, aos quais o antigo
“tribalismo” deve agora se submeter.
As antigas relações se transformaram, a
fim de que pudessem se inserir no novo quadro das relações políticas e
econômicas internacionais. Há um processo de redefinição do antigo e do
tradicional, que agora se torna “novo”. Portanto não se pode falar em
sociedades duais, mas sim em sociedades plurais. São nações formadas sobre
diferenças étnicas, culturais e econômicas recriadas em função de novos
objetivos nacionais e internacionais. Segundo Pablo Gonzáles Casanova e Rodolfo
Stavenhagen, trata-se do estabelecimento de relações de dominação e exploração
inter-regionais e intersetoriais, a que deram o nome de “colonialismo interno”.
O setor, a região ou o grupo a que se dá o nome de atrasado, subdesenvolvido,
marginal ou periférico nada mais é do que o setor que, em vista dos objetivos
nacionais e dos contratos assumidos, é excluído dos planos de desenvolvimento.
E, mantendo-se fora dos planos de expansão econômica, sobrevive apelando às
formas tradicionais de vida, recriadas para que a sociedade como um todo não
entre em colapso ou falência.
Estudando as diversas nações do chamado Terceiro
Mundo, fica claro que:
1. As regiões, populações e setores identificáveis como
subdesenvolvidos, arcaicos, tradicionais ou atrasados são parte integrante das
novas nações, o que significa que não estão em processo de transformação para
formas sociais e econômicas “adiantadas” ou “evoluídas”.
2. As regiões ou os
setores “atrasados” são dominados pelo setor ou região capitalista
desenvolvido, o qual se impõe nos processos de independência como representante
de toda a nação.
3. Os setores ou regiões “atrasados” tendem a permanecer como
tais, desde que assegurem o desenvolvimento do setor dominante, fornecendo mão
de obra barata por meio de migrações internas e imigrações ou fornecendo
alimentos resultantes de práticas agrícolas tradicionais, ou mesmo aumentando o
mercado interno, compondo uma população de consumidores potenciais.
4. As
formas tradicionais de vida (economia de subsistência, artesanato, subemprego
etc.) tendem a desaparecer quando não representam mais nenhum tipo de fluxo de
capital ou mão de obra, como as sociedades tribais brasileiras, em processo de
extinção.
5. Os setores “atrasados” são remanescentes de um processo de
exploração colonialista. Assim como contribuíram para a acumulação de capital
nas metrópoles, continuam possibilitando o enriquecimento, quer das áreas ou
dos setores “desenvolvidos”, quer das nações econômica e politicamente mais
poderosas, com as quais mantêm estreitos vínculos econômicos.