Neste texto será introduzido em uma concepção geral de
violência e de suas principais formas e dimensões. Serão discutidos também seus
desdobramentos sociais e jurídicos, para chegar a um consenso sobre em que
consiste a violação de direitos e o que efetivamente acarreta sanções do ponto
de vista da lei. O objetivo é propiciar um olhar de estranhamento em
relação à violência enquanto prática e ação social humana, tipificá-la e
compreendê-la em seus diferentes âmbitos, de modo a produzir uma reflexão ampla
e crítica sobre o problema.
A violência é, hoje, parte de nosso cotidiano. De maneira
direta ou indireta, somos expostos, diariamente, a todo tipo de informação alusiva a
atos de violação da integridade física, psicológica e moral de outros seres
humanos. Isso ocorre por meio dos noticiários televisivos, da mídia impressa,
do cinema, das séries policiais e da própria realidade à nossa volta. Somos
testemunhas de atos violentos, conhecemos pessoas que foram vítimas e também
agressoras, ou somos nós próprios vítimas ou responsáveis por ações que deixam
sequelas físicas e psicológicas. Por essa razão, tratar do tema “violência”
envolve sempre o risco da banalização e do senso comum. Pensar o problema de
maneira sociológica requer, antes de tudo, adotar um distanciamento apropriado,
procurando analisá-lo sob um enfoque objetivo. Mais uma vez, vamos recorrer ao
exercício do estranhamento, para tratar do assunto “violência” como se
estivesse sendo discutido pela primeira vez.
Iniciamos a discussão a atenção dada à violência pelos
meios de comunicação, especialmente pelos noticiários. Para isso, elaboramos
três reportagens fictícias, que fazem menção a atos violentos ocorridos em três
localidades diferentes, em um mesmo dia. O objetivo é basear-se no repertório
sobre violência e procurar mapear o que não
sabemos sobre o assunto. É fácil falar sobre o
assunto, mas é difícil ir além da notícia e explicar os fenômenos. Afinal de contas, por que a violência ocorre?
Texto
1
Homem
é baleado durante tentativa de assalto em shopping na Zona Oeste de São Paulo
Um
homem ainda não identificado foi atingido por cinco tiros no início da tarde desta
quinta-feira, no estacionamento de um shopping
localizado no bairro Continente, Zona
Oeste de São Paulo. Segundo informações da Polícia Civil, o homem foi vítima de
uma tentativa de assalto, por volta das 12 horas, após deixar um caixa
eletrônico no interior do shopping. Ainda de acordo com a polícia, a vítima reagiu ao assalto
e foi atingida pelos tiros na região do abdômen. O homem foi socorrido por
guardas que passavam pelo local e encaminhado ao pronto-socorro mais próximo,
onde passou por uma cirurgia para a retirada das balas. Segundo os médicos, seu
estado de saúde é grave. O suspeito de realizar a tentativa de assalto fugiu em
uma moto. Não há informações se algo foi roubado da vítima.
Texto 2
Pais
de estudante agridem diretor de escola e ameaçam crianças e professores em
Minas Gerais
Os
pais de um estudante de uma escola estadual em Jurisprunópolis, interior de
Minas Gerais, estão deixando alunos e professores amedrontados. Os dois têm
ameaçado de agressão outros pais e também alunos e professores. O diretor da
unidade chegou a ser agredido. O estudante tem 13 anos e seus pais vão
constantemente à escola fazer ameaças a crianças de 5ª a 8ª séries (6º ao 9º
anos). Um professor, que não quis ser identificado, contou como ocorre a
intimidação.
– Ele
(pai) me chamou de palhaço e perguntou se eu achava que o filho dele não tinha
pai. Ele disse que eu bati no filho dele, mas eu não fiz isso – afirmou.
O
caso mais grave, porém, aconteceu com o diretor da escola. Ele levou um soco do
pai da criança e denunciou o caso à polícia.
– De
repente, senti apenas o impacto do golpe. Em comum acordo, decidimos entregar à
família do menino o documento de transferência dele para outra escola. A
decisão é coletiva – lembrou a vítima, ainda com os lábios inchados.
De acordo
com a coordenadora pedagógica, uma equipe multidisciplinar será formada para
tentar resolver a situação.
Texto 3
Família
é mantida refém por duas horas na Zona Norte de São Paulo
Quatro
pessoas da mesma família foram mantidas reféns por três homens durante
aproximadamente duas horas dentro de casa na Zona Norte de São Paulo, na manhã
desta quinta-feira. De acordo com a Polícia Militar, por volta das 8 horas, o
trio invadiu a residência com a intenção de praticar um assalto. Os vizinhos
perceberam a ação dos suspeitos e chamaram a polícia.
Com a
chegada dos PMs, os três tomaram a família como refém, que ficou sob a mira de
três revólveres. Após quase duas horas de negociação com a PM, os ladrões
renderam-se e libertaram as vítimas. O Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate)
e o helicóptero Águia da PM também foram acionados para o local. Não houve
troca de tiros e ninguém se feriu.
(Elaborado
especialmente para o São Paulo faz escola)
Etapa 1 – O que é violência?
Vamos discutir a questão central que é a concepção do que é
violência. É importante ter em mente que, tal como diversos outros conceitos da
Sociologia, não há uma definição única sobre o que seja a violência, aceita de
forma unânime pelos sociólogos. Diferentes autores a abordam sob enfoques diversos.
Por essa razão, vamos começar por uma concepção geral, embasada na literatura sociológica.
Essa noção, entretanto, não deve ser entendida como um conceito fechado e
acabado, mas, sim, aberto ao debate e à reflexão crítica.
É possível que, nos textos anteriores, algumas das ações
identificadas na lista não sejam consideradas formas de violência, mas apenas
agressões, xingamentos ou atos correlatos. Isso porque o senso comum tende a
não as identificar como agressões, dado que a violência é geralmente
relacionada a atos criminosos, ou a atos que geram danos físicos para a pessoa
que sofre a ação violenta.
Porém, a violência envolve muito mais que as agressões
físicas que levam aos ferimentos ou à morte e, pela concepção que defenderemos
aqui, todas as expressões exemplificadas na lista podem ser consideradas formas
de violência.
Por quê? Porque em todas as situações estão envolvidos
seres humanos que, de uma forma ou de outra, foram afetados física, psicológica ou
moralmente pelas ações de outros indivíduos. Esta é a ideia central para a
compreensão da violência: a noção de que ela constitui uma ação que causa
alguma forma de dano a outro ser humano, direta ou indiretamente.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), no Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde (2002), a violência pode ser definida como o uso intencional de
força física ou do poder contra si mesmo, outra pessoa, um grupo ou uma
comunidade.
O uso da força ou do poder pode ser:
a) real, ou seja, quando chega às vias de fato e resulta em dano.
b) em forma de ameaça, isto é, quando representa alta probabilidade de causar dano psicológico, lesão, deficiência de desenvolvimento,
privação[1]
ou morte.
Para aprofundar a compreensão sobre o tema, leia o seguinte
trecho:
A
violência pode ser entendida como a ação ou ameaça de um indivíduo ou grupo
contra uma ou mais pessoas a fim de causar danos. Essa violência pode ser
direta, quando atinge imediatamente o corpo da pessoa que a sofre, ou indireta,
quando se dá por meio da alteração do ambiente no qual ela se encontra ou
quando se retiram, destroem ou danificam os seus recursos materiais. Tanto a
forma direta quanto a forma indireta prejudicam a pessoa ou o grupo alvo da violência.
Além disso, existe violência quando a ação causa constrangimentos não apenas
físicos, mas também psicológicos e morais. Finalmente, é preciso incluir a
violência simbólica, que não causa a morte física, mas atenta contra as
crenças, a cultura e a própria identidade dos indivíduos que dela são vítimas.
Concluindo, entende-se como violência tudo aquilo que não é desejado pelo outro
e que lhe é imposto pela força concreta ou simbólica.
(Elaborado
especialmente para o São Paulo faz escola)
Os atos violentos não necessariamente são realizados por
indivíduos de forma isolada, mas podem ser desempenhados por grupos organizados
ou não (como milícias e exércitos) e Estados, por exemplo. Essa é a violência organizada.
As ações violentas podem ser dirigidas não às pessoas, mas
às propriedades, causando prejuízos financeiros e consequências sérias, como no
caso da destruição de campos de cultivo e colheitas. Finalmente, no caso de
perseguição e repressão por causa de crenças religiosas, por exemplo, ocorre
violência sobre as participações simbólicas e culturais de uma população na
vida de uma sociedade. É a violência contra a cultura e a religião de um povo.
Dimensões e formas da violência
Partindo do raciocínio apresentado, podemos perceber que a
violência caracteriza as ações humanas não somente no plano das interações entre os
indivíduos, mas também nas relações entre grupos. Ela pode se dar de forma direta,
por meio de agressões propriamente ditas, que geram danos físicos, ou por outros
meios que não necessariamente afetam o corpo da pessoa, mas a prejudicam do
ponto de vista moral e psicológico ou ofendem suas crenças e seus costumes. A
violência também pode se dar por ameaça. Além disso, os efeitos da violência
podem não ser sentidos ou percebidos imediatamente à sua consecução, mas após
algum tempo, ou ainda perdurar por muitos anos, como é o caso de pessoas que
sofrem sequelas ou ficam traumatizadas após terem sido vítimas de atos
violentos.
A dimensão mais imediatamente perceptível da violência
contra outro ser humano é aquela que gera danos – permanentes ou não – à sua
integridade física. É o que denominamos de violência
física. Alguns exemplos são: tapas,
empurrões, chutes, mordidas, queimaduras, tentativas de asfixia, de afogamento,
de homicídio etc. Muitos atos entendidos como formas de violência física são
tipificados como crimes de lesão
corporal, isto é, quando ofendem a integridade
e a saúde corporal de outra pessoa. Nesse caso, a lesão pode ser leve ou grave,
sendo o segundo tipo quando a pessoa corre perigo de vida, passa a sofrer
debilidade permanente de membro, sentido ou função, perde ou fica com um dos
membros, sentidos ou funções inutilizado, fica incapacitada para o trabalho,
fica deformada, aborta ou é levada ao parto prematuro. No limite, a violência
física leva à morte da vítima. Nesse caso, a violência física é tipificada como
crime de homicídio.
A violência física também pode ter conotação sexual, nos
casos em que uma pessoa é constrangida a manter relações sexuais contra sua
vontade. Nesse caso, é denominada crime de estupro[2].
Embora a lei brasileira interprete o estupro como crime contra a dignidade sexual,
esse ato não deixa de ser uma forma de violência que afeta profundamente as
pessoas em sua personalidade, desrespeitando os direitos humanos, ao ferir a
integridade pessoal e o controle do próprio corpo.
A violência não necessariamente precisa deixar marcas no
corpo de uma pessoa. A própria ameaça de violência física gera transtornos de
natureza psicológica que constrangem a vítima a adotar comportamentos contra
sua vontade ou, ao contrário, privam-na de sua liberdade. Por essa razão, esse
tipo de violência é denominado violência
psicológica. Alguns exemplos são humilhações,
ameaças de agressão, danos propositais ou ameaças de dano a objetos, a animais
de estimação ou a pessoas queridas, privação de liberdade, assédio sexual[3],
entre outros. Porém, nem sempre uma pessoa que sofre de violência psicológica
percebe que é vítima. O uso constante de palavrões, expressões depreciativas e
manifestações de preconceito, por exemplo, pode levar a tal degradação da
autoestima que a pessoa passa a acreditar que ela
é a responsável pela violência da qual
é vítima.
A percepção ou não da condição de vítima (e, por
conseguinte, de agressor) é uma questão fundamental para a compreensão da dimensão
simbólica da violência; ou seja, quando as relações de dominação
entre grupos sociais encontram-se tão enraizadas e naturalizadas que a
violência exercida por uns sobre os outros é vista como uma parte “natural” da
ordem social estabelecida. Nesse caso, tanto o grupo social dominado como
o dominante (uma vez que compartilham os mesmos instrumentos de
conhecimento social da realidade) pensam e se relacionam de modo semelhante,
aceitando padrões de comportamento que tendem a reproduzir a
dominação e, consequentemente, a violência de uns sobre outros.
Para aprofundar a discussão, tomemos como exemplo a forma
como se dão, em nossa sociedade, as relações entre homens e mulheres. Nela,
encontra-se enraizada a noção de que os homens são mais fortes, e as mulheres,
fisicamente mais frágeis. Os comportamentos violentos seriam uma característica
“natural” do homem, o que não é verdade.
A dificuldade em encontrar uma definição precisa para essa
questão está no fato de que a concepção de violência que temos atualmente nem
sempre foi a mesma. A percepção que uma população tem a respeito dela também
muda no tempo, conforme a sociedade, o Estado e as instituições responsáveis pela
segurança se organizam para controlá-la. Além disso, as leis, ou seja, as
normas e as regras que regulam as relações entre os indivíduos no interior de
uma sociedade, também se modificam histórica e culturalmente. Desse ponto de
vista, o que é considerado, em um determinado país ou cultura, uma forma de
violência contra a pessoa, pode não ser assim considerado em outro país ou
cultura.
Um exemplo é o caso da pena de morte. Alguns países preveem
em sua Constituição a pena de morte, enquanto outros, como o Brasil, não. Em
uma mesma sociedade, diferenças regionais, sociais, econômicas e culturais contribuem
para modificar as percepções sobre a violência. Por essa razão, é importante enfatizar
aos alunos que nada pode ser considerado “normal” ou “natural” apenas porque
hoje a violência faz parte do nosso cotidiano, em maior ou menor grau. É
preciso sempre adotar um olhar de distanciamento em relação ao fenômeno social
da violência e uma postura reflexiva e crítica quanto às suas consequências
para a sociedade.
Questões:
1.
Em relação aos
textos 1, 2 e 3, identifique as ações praticadas em cada caso que podem ser
consideradas violentas e quais foram suas consequências. Você pode apontar
também quais consequências você acha que poderiam ocorrer nesses casos.
2.
Qual das
situações analisadas você considera mais violenta? Por quê?
3.
Na sua opinião,
em qual dos casos foram deixadas sequelas mais sérias nas vítimas? Por quê?
4.
Pesquisar, em
revistas, jornais e na internet, reportagens e matérias que relatem episódios
de violência variados. O objetivo da pesquisa é obter um caso de violência
física, um de violência psicológica e outro de violência simbólica. O trabalho deve
contemplar os seguintes aspectos:
· assunto da reportagem;
· breve descrição dos fatos ocorridos;
· identificação das vítimas e dos agressores;
· identificação do(s) tipo(s) de violência abordado(s) na reportagem;
· justificativa da resposta anterior.
5. Elabore um pequeno texto dissertativo
sobre as formas de violência mais frequentemente noticiadas pela mídia (jornais,
revistas, noticiários televisivos, internet) e de que maneiras esse tratamento
dado pelos meios de comunicação contribui para formar nosso conhecimento sobre
o que é violência.
[2] A legislação brasileira distinguia, até recentemente, o
estupro do atentado violento ao pudor, que significa constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se
pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Mas, desde o dia 7 de
agosto de 2009, no Código Penal Brasileiro, os dois tipos de violência sexual
passaram a ser considerados estupro.
[3] Ato de poder em que uma pessoa com a qual se convive em uma
instituição aproveita-se dessa condição para insinuar ou fazer proposta sexual
sob ameaças de perda do emprego, do cargo ou espaço ocupado, de não ter
promoção, de delação, humilhação ou intimidação.