Introduziremos agora a noção da relação entre
“estabelecidos” e “outsiders”. Essa teoria foi cunhada pelo sociólogo
Norbert Elias (1897-1990) no livro Os
estabelecidos e os outsiders,
no qual ele estabelece a análise das tensões ocorridas na pequena cidade de
Winston Parva (nome fictício), na Inglaterra. Esse texto é importante porque nos
ajuda a compreender e a refletir não apenas sobre a pequena Winston Parva –
cujo verdadeiro nome nem sabemos –, mas a pensar o Brasil e algumas das tensões
que aqui existem.
O texto de Norbert Elias é muito complexo, e o autor
introduz uma série de conceitos que não precisam ser todos discutidos. As
possibilidades de pensar os conceitos de estabelecidos e outsiders são muitas.
Apresentaremos algumas informações importantes Norbert Elias
que ajudarão a compreender sua obra:
- Norbert Elias nasceu na
cidade de Breslau, em 1897, na antiga Alemanha. Atualmente a cidade chama-se
Wroclaw e fica na Polônia (mudança ocorrida depois da Segunda Guerra Mundial).
Elias, portanto, se considerava alemão e Breslau, uma cidade alemã;
- Era filho de judeus.
Primeiro estudou Medicina, depois Filosofia e, por fim, interessou-se pela
Sociologia. Com os ânimos exaltados na Alemanha e a Segunda Guerra Mundial quase
começando, foi para a Inglaterra com medo das perseguições que já ocorriam na Alemanha;
- Seu primeiro livro foi
publicado em 1938 e passou os trinta anos seguintes esquecido;
- Elias viajou por vários
países, tendo morado até na África, onde lecionou na Universidade
de Gana;
- Ele sempre foi um outsider na Academia. Ou seja, sofreu preconceito e só conseguiu o
reconhecimento pela sua obra tardiamente, quando beirava os setenta anos.
Nessa introdução afirmamos que não foi à toa que ele se
interessou por tal tema, pois também foi um outsider em
alguns momentos de sua vida. Publicado pela primeira vez em 1965, Os estabelecidos e os outsiders foi escrito em parceria com John L.
Scotson. Nele, Elias faz uma análise das tensões entre dois grupos na pequena Winston
Parva. A princípio, seu estudo era sobre os diferentes níveis de delinquência
encontrados entre o lado mais novo da cidade e o antigo.
Mas, no decorrer da pesquisa, ele mudou seu objeto para
as relações entre os
bairros. Sua decisão de mudar de
objeto se mostrou acertada, pois as diferenças entre os níveis de delinquência praticamente
acabaram no terceiro ano da pesquisa. O bairro mais antigo, contudo, continuava
a ver a nova área como local de delinquência.
Elias verificou que naquela pequena localidade era
possível encontrar um tema universal: como
um grupo estabelecido estigmatiza um outro grupo tratando-o como outsider.
O termo outsider não tem uma tradução muito fácil para a língua portuguesa.
Literalmente, significa “de fora”, ou seja, alguém que veio de outro lugar e
não é membro original de um grupo, não se encaixa muito bem nele. Mas dizer
em português que alguém é um “de fora” soa um tanto estranho aos nossos
ouvidos. É por isso que o termo não é traduzido e usa-se a expressão em
inglês. Na obra Os estabelecidos e os outsiders,
Norbert Elias aplica a categoria “outsider”
para referir-se aos habitantes mais novos de Winston Parva. No entanto,
utiliza também para designar de forma geral os grupos que detêm menos poder.
Em contraposição à categoria de “outsider”,
Elias denomina os antigos moradores da cidade de “estabelecidos”, que também
aplica para designar os grupos que detêm mais poder.
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Os estabelecidos consideram-se humanamente superiores. Isto é, os grupos poderosos veem-se como pessoas melhores. A inferioridade de poder é vista como inferioridade humana, e por isso recusam-se a ter qualquer contato
maior com os outsiders
que não seja o meramente profissional.
Isso ocorre porque os estabelecidos acreditam que são
dotados do que Elias chama de “uma espécie de carisma grupal”, um tipo de
qualidade que faltaria aos outsiders.
O que acham que levava a isso? Quais fatores
podem levar um grupo a hostilizar outro? Com base nos fatores apontados, estabeleceremos relações com
as categorias criadas por Elias. Tal relação entre estabelecidos e outsiders normalmente é explicada como resultado de diferenças
raciais, étnicas ou religiosas, mas que em Winston Parva os grupos não diferiam
entre si pela nacionalidade, ascendência étnica, cor ou tipo de ocupação.
Logo, o que estava em jogo naquela pequena cidade e o que
está em jogo numa relação entre estabelecidos e outsiders não é a diferença de cor, religião, ou qualquer outra
entre os grupos, mas sim a diferença
de poder.
Elias mostrou que o problema não está nessas
características que podem diferenciar os grupos, mas no fato de que uns grupos têm mais poder e acham que por
isso são melhores do que os outros. Os
grupos detentores de mais poder usam essas diferenças porque se veem como
superiores. A questão é a
diferença no equilíbrio de poder entre eles. Ou seja, em última instância, não é a
cor, a religião, a nacionalidade etc., que faz um grupo ver outro como
inferior, e sim o fato de que eles detêm
maior poder e,
assim, usam esses fatores como justificativa para manter esse poder. Isso tanto pode ser feito de forma inconsciente quanto
consciente. Ou seja, um grupo pode manipular as características de outro de
forma negativa a seu favor, de
propósito, como pode fazer isso de forma inconsciente.
No caso da cidade estudada por Elias, a única diferença
entre as duas áreas era o
tempo de residência: um grupo
estava lá havia duas ou três gerações e o outro chegara recentemente. A
superioridade não tinha a ver com poder militar ou econômico, mas com o
alto grau de coesão das famílias (ELIAS;
Scotson, 2000. p. 22).
Desta forma, eles conseguiam se organizar para obter os melhores cargos nas organizações locais,
como no conselho, na escola no clube e, assim, excluíam os outros que não
tinham coesão entre si. A coesão de um grupo está relacionada ao grau de
integração do grupo. Os moradores mais antigos eram, portanto, profundamente integrados.
Questionamos: O
que vocês acham que pode levar à integração de um grupo? O que levava a essa integração era a aceitação quase irrestrita das regras do
grupo. Ou seja, grupos coesos são
aqueles nos quais seus participantes aceitam quase que totalmente as regras do
grupo ao qual pertencem.
Concluímos que Elias então percebeu que o grau de coesão de um grupo interfere nas
relações de poder entre esse grupo e o resto da sociedade. Pois um grupo coeso pode atingir seus
objetivos de forma muito mais rápida e eficaz do que aquele cujo grau de
integração é menor.
Por fim, é importante dizer que o grupo outsider é muitas vezes estigmatizado e questionar: O que isso quer dizer? O que significa dizer
que um grupo é estigmatizado por outro?
Isso ocorre devido ao grande desequilíbrio de poder. Um
grupo só consegue estigmatizar outro quando as relações de poder tendem
claramente para o seu lado. Isso expressa o fato de que o equilíbrio de poder
entre os grupos é muito instável – afinal, um deles precisa deter muito mais poder
do que o outro para ser capaz de estigmatizá-lo, e assim dizer que o outro tem “valor
humano” inferior como forma de manter sua superioridade (ELIAS; SCOTSON, 2000, p.
24). Isso só muda quando há alteração no equilíbrio de poder entre os grupos.
Mas o estigma não pode ser confundido com o preconceito,
pois a questão não
é individual e
sim social, ou seja, há diferença entre preconceito individual
e estigmatização grupal. A estigmatização
é um processo social. Em Winston Parva as pessoas eram estigmatizadas não
pelas suas qualidades ou defeitos individuais, mas por serem membros de um grupo malvisto,
considerado coletivamente inferior. O grupo dos estabelecidos da cidade havia
desenvolvido um estilo de vida e um conjunto de normas partilhadas pelos seus membros,
mas tais normas eram desconhecidas pelos moradores da parte nova da cidade.
E para deixar a discussão mais próxima da realidade
brasileira, poderíamos lembrar de vários exemplos de grupos estigmatizados em
nossa sociedade. Questionar por que esse grupo é considerado estigmatizado.
Questionar a quem interessa mantê-lo nessa condição.
A favela, por exemplo. Infelizmente, no nosso país, o
morador da favela com frequência é estigmatizado pela sociedade. Muitos acham
que todos os que moram na favela são ladrões ou pessoas que não querem
trabalhar, entre outras características negativas. Afirme que, com base nesse estigma,
muitas vezes o termo “favelado” é usado como forma de xingamento, e não apenas para
designar quem mora na favela. É usado entre não favelados para a desqualificação
do outro, qualquer que seja ele, favelado ou não.
Trata-se do que Elias chama de “desonra grupal”. Com
isso, as pessoas que moram na favela são sistematicamente depreciadas sem ao
menos ter chance de mostrar que não se enquadram nesse triste estereótipo – podem,
por exemplo, perder oportunidades de emprego por conta disso, – pelo simples
fato de pertencerem a um grupo estigmatizado.
É importante concluir a discussão afirmando que o texto
de Norbert Elias não ajuda apenas a compreender as tensões na pequena cidade de
Winston Parva.
Ele é relevante para que possamos entender as tensões da nossa sociedade, do nosso
país e mesmo do nosso bairro. Ele nos ajuda a refletir sobre questões e tensões
presentes entre nós,
brasileiros, da mesma forma que pode
nos auxiliar na compreensão das tensões que ocorrem em outros países ou
momentos históricos.
O texto sobre as relações entre os estabelecidos e os outsiders promove a compreensão e a reflexão sobre as relações sociais de uma forma geral.