quarta-feira, 16 de maio de 2018

Violência e Sociedade - Guerra Civil na Contemporaneidade


H. M. En­zens­berger é outro autor que toma o tema da vi­o­lência da pers­pec­tiva de aná­lise das guerras civis (EN­ZENS­BERGER, H. M. Vi­sões da Guerra Civil. In: Guerra civil. São Paulo: Com­pa­nhia das Le­tras, 1995, pp. 7-67).

Para ele, a guerra é uma in­venção do homem, que pla­neja e exe­cuta o ex­termínio de sua pró­pria es­pécie. Dis­tingue entre guerra civil e guerra entre as na­ções, e en­tende a pri­meira como "a forma ori­ginal de todos os con­flitos co­letivos" (p. 9), en­quanto a outra pres­supõe um Es­tado ini­migo ex­terno e im­plica a for­mação de pes­soal es­pe­ci­a­li­zado e uma or­ga­ni­zação mar­cada pela ra­ci­o­na­lização. Re­gras e re­gu­la­men­ta­ções ba­se­adas no di­reito in­ter­na­ci­onal foram es­tabe­le­cidas a partir do sé­culoXIX, di­fe­ren­ci­ando-a da guerra civil, uma forma irre­gular de con­flito, sem dis­ci­plina e pla­ne­ja­mento. Porém, a di­fe­rença marcante entre elas é que na guerra entre na­ções, a luta é contra um ini­migodes­co­nhe­cido, en­quanto na guerra civil há a luta e a morte entre pes­soas que se co­nhecem.

Biografia de Hans Magnus Enzensberger Nascido em Kaufbeuren, na Alemanha, em 11 de novembro de 1929, este filósofo, poeta e ensaísta estudou Literatura e Filosofia em grandes universidades alemãs e obteve seu doutorado na Sorbonne, em 1955. Viveu em Cuba nos anos de 1960, tendo publicado um livro, O interrogatório em Havana, em 1970. Por suas posições políticas, exerceu grande influência nos movimentos estudantis de 1968, mas se tornou, posteriormente, um crítico do “socialismo real”. Escreveu importantes textos políticos em que faz a crítica das sociedades de mercado e discute o colapso do socialismo. Seus textos foram elogiados por Adorno e Horkheimer; é visto como um continuador de Brecht em sua poesia. Entre suas obras, citamos: • Política e crime, ensaios, 1964. • Conversações com Marx e Engels, 1970. • Considerações políticas, ensaios, 1974. • A filha do ar, ficção, 1992. • Música do futuro, poesia, 1991.

Guerra civil na atualidade

Um ponto importante no texto desse autor é a análise das guerras civis após o término da Guerra Fria. No contexto da Guerra Fria, o que se observa é que as guerras civis foram insufladas e instrumentalizadas por forças externas e, assim, os conflitos ganhavam dimensão internacional, ameaçando a deflagração de uma Terceira Guerra Mundial. No jogo mais abrangente, as grandes potências visavam ao aumento de seu campo de influência e seus impérios coloniais. Com o fim da Guerra Fria, a guerra civil deixa de ser um bom negócio, dando lugar a uma política de paz dos países industrializados, bem como às missões de paz da ONU. Enzensberg é bastante crítico ao afirmar que isso tudo não passou de uma estratégia do capital, que percebeu que a guerra leva à suspensão de investimentos e perda do crescimento econômico.

A partir de então, surge um novo tipo de guerra civil, de dentro para fora do país, em um processo endógeno, sendo o caso mais emblemático o do Afeganistão: quando os soviéticos e norte-americanos se retiraram desse país, a verdadeira guerra civil irrompeu. Quebra-se, assim, segundo o autor, o verniz ideológico, a aparência heroica de guerrilheiros e rebeldes. O que resta são bandos, “massas amorfas armadas”, envolvidos com "o roubo, o assassinato, e a pilhagem" (p.14).

Guerra civil na metrópole

Essa nova guerra civil, porém, não diz respeito apenas aos países do chamado Terceiro Mundo, ligada ao subdesenvolvimento, anacronismo e fundamentalismo. Enzensberger chama a atenção para o que acontece nas metrópoles, nas quais todos vivem ameaçados pela situação de guerra civil. Ainda que destaque a diferença entre as guerras no Afeganistão ou na Chechênia e a situação do indivíduo que, armado, dispara contra transeuntes, reconhece que há "um denominador comum a essas manifestações" (p. 16). Também pondera que nas guerras civis do presente, a violência não tem mais fundamentações ideológicas, e os combatentes perderam suas convicções e ideais. O que se observa, hoje, é uma indefinição entre coragem e covardia, como um sinal de “autismo e perda da convicção” (p. 17).Uma expressão disso são os conflitos étnicos que o autor vê apenas como “brigas irracionais”, sustentadas pelo poder de destruição, extermínios de vidas consideradas “sem valor”.

O sentido de autismo é o de desligamento do mundo exterior e fechamento dentro de seu próprio mundo.

Indícios da guerra civil

Nessas guerras civis mo­le­cu­lares e re­gi­o­nais, além do au­tismo, o autor afirma existir uma outra ca­rac­te­rística: a ab­ne­gação. Para de­finir esse termo, re­corre a Arendt em sua ex­pli­cação para o sur­gi­mento dos sis­temas to­ta­li­tá­rios. Para essa au­tora, a ab­ne­gação não é mais uma qua­li­dade po­si­tiva, mas a ex­pressão da dis­se­mi­nação do ódio na vida co­ti­diana, le­vando os in­di­ví­duos ao de­sin­te­resse pelo pró­prio bem-estar e ao fra­casso do ins­tinto de au­to­pre­ser­vação.

Neste sen­tido, ab­ne­gação sig­ni­fica o sen­ti­mento de que não se é afetado pelos acon­te­ci­mentos; há uma in­di­fe­rença “cí­nica e en­fas­tiada”.

Hoje, os criminosos são sustentados pelo ódio e qualquer elemento que mostre o outro como diferente é suficiente para fomentá-lo. Nesse ponto, Enzensberger destaca o impulso para a autodestruição, pois para os criminosos, viver ou morrer é a mesma coisa, já que sabem que não há futuro para eles e seus iguais. Tudo se resume ao presente, no qual se eliminam todas as possibilidades de sobrevivência.

Quais são os indícios da guerra civil, os seus primeiros sinais? Para o autor, é o lixo acumulado nas ruas, as seringas e garrafas quebradas, as depredações nas escolas, as pichações etc. Vê nisso a expressão do ódio por tudo o que funciona e o ódio por si mesmos. Essas são atitudes de adolescentes que antecipam a guerra civil, mas a violência está latente também em seus pais: "Um rancor destrutivo, que apenas em casos agudos é canalizado para formas toleradas socialmente, como a obsessão por automóveis, comida e trabalho, avareza, agressividade, racismo e violência na família" (pp. 37-38).

Aos poucos, essa violência vai se espalhando pela cidade, ocupando espaços onde o direito, o Estado e a sociedade humana não existem.

Cidade sitiada

O quadro tra­çado por En­zens­berger é de uma ci­dade si­tiada, na qual só resta aos in­di­ví­duos fugir ou re­sistir. E quem não foge deve se pro­teger, pas­sando a viver em zonas iso­ladas por muros, com a sua pró­pria se­gu­rança ar­mada. Do outro lado, ficam as re­giões en­tre­gues aos de­lin­quentes. Na luta contra a violência, a po­lícia, o exér­cito, os grupos de mer­ce­ná­rios igualam-se aos cri­minosos, aos seus ad­ver­sá­rios.

Cultura da violência e do ódio

Nessa so­ci­e­dade mar­cada pela vi­o­lência e pelo ódio, o rancor e o medo con­tagiam a todos e a questão que se co­loca é a da res­pon­sa­bi­li­dade de cada um pela guerra civil. Assim como Adorno, En­zens­berger tem como re­fe­rência o nazismo na Ale­manha e a res­pon­sa­bi­li­dade da po­pu­lação civil que, a seu ver, não era ino­cente: “Mas quem criou e ali­mentou os cri­mi­nosos, quem rezou por eles e os aplaudiu, senão a ‘ino­cente po­pu­lação civil’”? (p. 46). Trata-se de um cha­mado à nossa res­pon­sa­bi­li­dade di­ante da vi­o­lência que nos cons­trange e diante da qual só re­a­gimos quando somos atin­gidos, como se até então ela não exis­tisse.

Essa cul­tura da vi­o­lência e do ódio é in­cen­ti­vada pela in­dús­tria cul­tural que, na li­te­ra­tura, na mú­sica, na te­le­visão, no ci­nema, di­funde o culto à vi­o­lência e disse­mina a cul­tura do ódio. Di­ante da ex­pansão dos meios de co­mu­ni­cação de massa e a ra­pidez de cir­cu­lação da in­for­mação, somos todos es­pec­ta­dores dos crimes no­ti­ci­ados, ex­postos ao terror trans­for­mado em es­pe­tá­culo. Se di­ante do que nos é mos­trado sen­timos medo e in­se­gu­rança, não con­se­guimos su­perar, en­tre­tanto, a sen­sação de in­com­pe­tência e im­po­tência e isso nos leva ao afas­tamento, à pas­si­vi­dade ou à ne­gação da res­pon­sa­bi­li­dade. Para En­zens­berger, é aí que “se lo­ca­liza o germe do pro­cesso de bru­ta­li­zação que pode evo­luir para a agres­si­vi­dade fu­riosa” (p. 55).

Educação e responsabilidade

En­quanto Adorno apela para a edu­cação como forma de evitar a bar­bárie e a re­to­mada do que pos­si­bi­litou a exis­tência de Aus­chwitz, En­zens­berger con­clama para que todos pro­cu­remos ava­liar o grau de nossa res­pon­sa­bi­li­dade e par­ti­cipar na de­fi­nição das pri­o­ri­dades, agindo para a re­so­lução dos pro­blemas que nos cercam. Essa é uma luta do dia a dia contra a guerra civil que, para ele, as­se­melha-se à luta de Sí­sifo tendo que em­purrar uma pedra mon­tanha acima, con­ti­nu­a­mente. Por­tanto, a luta pela paz é uma luta con­tínua.


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