H. M. Enzensberger é outro autor que
toma o tema da violência da perspectiva de análise das guerras civis (ENZENSBERGER,
H. M. Visões da Guerra Civil. In: Guerra civil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995, pp. 7-67).
Para ele, a guerra é uma invenção do
homem, que planeja e executa o extermínio de sua própria espécie. Distingue
entre guerra civil e guerra entre as nações, e entende a primeira como
"a forma original de todos os conflitos coletivos" (p. 9), enquanto a outra pressupõe um Estado
inimigo externo e implica a formação de pessoal especializado e uma
organização marcada pela racionalização. Regras e regulamentações
baseadas no direito internacional foram estabelecidas a partir do séculoXIX,
diferenciando-a da guerra civil, uma forma irregular de conflito, sem
disciplina e planejamento. Porém, a diferença marcante entre elas é que
na guerra entre nações, a luta é contra um inimigodesconhecido, enquanto
na guerra civil há a luta e a morte entre pessoas que se conhecem.
Biografia de Hans Magnus Enzensberger
Nascido em Kaufbeuren, na Alemanha, em 11 de novembro de 1929, este filósofo,
poeta e ensaísta estudou Literatura e Filosofia em grandes universidades alemãs
e obteve seu doutorado na Sorbonne, em 1955. Viveu em Cuba nos anos de 1960,
tendo publicado um livro, O interrogatório em Havana, em 1970. Por suas
posições políticas, exerceu grande influência nos movimentos estudantis de
1968, mas se tornou, posteriormente, um crítico do “socialismo real”. Escreveu
importantes textos políticos em que faz a crítica das sociedades de mercado e
discute o colapso do socialismo. Seus textos foram elogiados por Adorno e
Horkheimer; é visto como um continuador de Brecht em sua poesia. Entre suas
obras, citamos: • Política e crime, ensaios, 1964. • Conversações com Marx e
Engels, 1970. • Considerações políticas, ensaios, 1974. • A filha do ar,
ficção, 1992. • Música do futuro, poesia, 1991.
Guerra
civil na atualidade
Um ponto
importante no texto desse autor é a análise das guerras civis após o término da
Guerra Fria. No contexto da Guerra Fria, o que se observa é que as guerras
civis foram insufladas e instrumentalizadas por forças externas e, assim, os
conflitos ganhavam dimensão internacional, ameaçando a deflagração de uma
Terceira Guerra Mundial. No jogo mais abrangente, as grandes potências visavam
ao aumento de seu campo de influência e seus impérios coloniais. Com o fim da
Guerra Fria, a guerra civil deixa de ser um bom negócio, dando lugar a uma
política de paz dos países industrializados, bem como às missões de paz
da ONU. Enzensberg é bastante crítico ao afirmar que isso tudo não passou
de uma estratégia do capital, que percebeu que a guerra leva à suspensão de
investimentos e perda do crescimento econômico.
A partir de
então, surge um novo tipo de guerra civil, de dentro para fora do país, em um
processo endógeno, sendo o caso mais emblemático o do Afeganistão: quando os
soviéticos e norte-americanos se retiraram desse país, a verdadeira guerra
civil irrompeu. Quebra-se, assim, segundo o autor, o verniz ideológico, a
aparência heroica de guerrilheiros e rebeldes. O que resta são bandos, “massas
amorfas armadas”, envolvidos com "o roubo, o assassinato, e a
pilhagem" (p.14).
Guerra civil na metrópole
Essa nova guerra civil, porém, não diz respeito apenas aos
países do chamado Terceiro Mundo, ligada ao subdesenvolvimento, anacronismo e
fundamentalismo. Enzensberger chama a atenção para o que acontece nas
metrópoles, nas quais todos vivem ameaçados pela situação de guerra civil.
Ainda que destaque a diferença entre as guerras no Afeganistão ou na Chechênia
e a situação do indivíduo que, armado, dispara contra transeuntes, reconhece
que há "um denominador comum a essas manifestações" (p. 16). Também pondera que nas guerras civis do presente,
a violência não tem mais fundamentações ideológicas, e os combatentes perderam
suas convicções e ideais. O que se observa, hoje, é uma indefinição entre
coragem e covardia, como um sinal de “autismo e perda da convicção” (p. 17).Uma expressão disso são os conflitos étnicos que o
autor vê apenas como “brigas irracionais”, sustentadas pelo poder de
destruição, extermínios de vidas consideradas “sem valor”.
O sentido de autismo é o de desligamento do mundo exterior e
fechamento dentro de seu próprio mundo.
Indícios da guerra civil
Nessas
guerras civis moleculares e regionais, além do autismo, o autor afirma existir
uma outra característica: a abnegação. Para definir esse termo, recorre
a Arendt em sua explicação para o surgimento dos sistemas totalitários.
Para essa autora, a abnegação não é mais uma qualidade positiva, mas a
expressão da disseminação do ódio na vida cotidiana, levando os indivíduos
ao desinteresse pelo próprio bem-estar e ao fracasso do instinto de autopreservação.
Neste sentido, abnegação significa
o sentimento de que não se é afetado pelos acontecimentos;
há uma indiferença
“cínica e enfastiada”.
Hoje, os
criminosos são sustentados pelo ódio e qualquer elemento que mostre o outro
como diferente é suficiente para fomentá-lo. Nesse ponto, Enzensberger destaca
o impulso para a autodestruição, pois para os criminosos, viver ou morrer é a
mesma coisa, já que sabem que não há futuro para eles e seus iguais. Tudo se
resume ao presente, no qual se eliminam todas as possibilidades de
sobrevivência.
Quais são os
indícios da guerra civil, os seus primeiros sinais? Para o autor, é o lixo
acumulado nas ruas, as seringas e garrafas quebradas, as depredações nas
escolas, as pichações etc. Vê nisso a expressão do ódio por tudo o que funciona
e o ódio por si mesmos. Essas são atitudes de adolescentes que antecipam a guerra
civil, mas a violência está latente também em seus pais: "Um rancor
destrutivo, que apenas em casos agudos é canalizado para formas toleradas
socialmente, como a obsessão por automóveis, comida e trabalho, avareza,
agressividade, racismo e violência na família" (pp. 37-38).
Aos poucos,
essa violência vai se espalhando pela cidade, ocupando espaços onde o direito,
o Estado e a sociedade humana não existem.
Cidade sitiada
O quadro traçado por Enzensberger é
de uma cidade sitiada, na qual só resta aos indivíduos fugir ou resistir.
E quem não foge deve se proteger, passando a viver em zonas isoladas por
muros, com a sua própria segurança armada. Do outro lado, ficam as regiões
entregues aos delinquentes. Na luta contra a violência, a polícia, o
exército, os grupos de mercenários igualam-se aos criminosos, aos seus adversários.
Cultura da violência e do ódio
Nessa sociedade marcada pela violência
e pelo ódio, o rancor e o medo contagiam a todos e a questão que se coloca é
a da responsabilidade de cada um pela guerra civil. Assim como Adorno, Enzensberger
tem como referência o nazismo na Alemanha e a responsabilidade da população
civil que, a seu ver, não era inocente: “Mas quem criou e alimentou os criminosos,
quem rezou por eles e os aplaudiu, senão a ‘inocente população civil’”?
(p. 46). Trata-se de um chamado à nossa responsabilidade diante da
violência que nos constrange e diante da qual só reagimos quando somos
atingidos, como se até então ela não existisse.
Essa cultura
da violência e do ódio é incentivada pela indústria cultural que, na literatura,
na música, na televisão, no cinema, difunde o culto à violência e dissemina
a cultura do ódio. Diante da expansão dos meios de comunicação de massa e
a rapidez de circulação da informação, somos todos espectadores dos
crimes noticiados, expostos ao terror transformado em espetáculo. Se
diante do que nos é mostrado sentimos medo e insegurança, não conseguimos
superar, entretanto, a sensação de incompetência e impotência e isso
nos leva ao afastamento, à passividade ou à negação da responsabilidade.
Para Enzensberger, é aí que “se localiza o germe do processo de brutalização
que pode evoluir para a agressividade furiosa” (p. 55).
Educação e responsabilidade
Enquanto
Adorno apela para a educação como forma de evitar a barbárie e a retomada
do que possibilitou a existência de Auschwitz, Enzensberger conclama
para que todos procuremos avaliar o grau de nossa responsabilidade e
participar na definição das prioridades, agindo para a resolução dos
problemas que nos cercam. Essa é uma luta do dia a dia contra a guerra civil
que, para ele, assemelha-se à luta de Sísifo tendo que empurrar uma pedra
montanha acima, continuamente. Portanto, a luta pela paz é uma luta contínua.