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Alienação

I. DEFINIÇÃO

"Ao nível de máxima generalização, a Alienação pode ser definida como o processo pelo qual alguém ou alguma coisa (segundo Marx, a própria natureza pode ficar envolvida no processo de Alienação humana) é obrigado a se tornar outra coisa diferente daquilo que existe propriamente no seu ser" (P. Chiodi). O uso corrente do termo designa, frequentemente em forma genérica, uma situação psicossociológica de perda da própria identidade individual ou coletiva, relacionada com uma situação negativa de dependência e de falta de autonomia.

A Alienação, portanto, faz referência a uma dimensão subjetiva e juntamente a uma dimensão objetiva histórico-social. Neste sentido se fala: de Alienação mental como estado psicológico conexo com a doença mental; de Alienação dos colonizados enquanto sofrem e interiorizam a cultura e os valores dos colonizadores; de Alienação dos trabalhadores enquanto são integrados, através de tarefas puramente executivas e despersonalizadas, na estrutura técnico-hierárquica da empresa individual, sem ter nenhum poder nas decisões fundamentais; de Alienação das massas enquanto objeto de heterodireção e de manipulação através do uso dos mass media, da publicidade, da organização mercificada do tempo livre; de Alienação da técnica como instrumentação dos aparelhos para que funcionem segundo uma lógica de eficácia e de produtividade independente do problema dos fins e do significado humano de seu uso.

A definição do termo em relação aos diferentes estados de despersonalização e de perda de autonomia por parte dos sujeitos envolvidos nos processos em questão corresponde a uma banalização do conceito, mas também à complexidade de semântica que ele tem na cultura filosófico-política moderna dentro da qual ele foi elaborado.

II. DE ROUSSEAU A MARX

A doutrina contratualista transfere o conceito de Alienação do âmbito originariamente jurídico (alienatio como cessão de uma propriedade) para o âmbito filosófico político a fim de explicar o fundamento do Estado e da sociedade política.

Hobbes fala de "cessão" (to give up) do direito de o soberano se governar a si mesmo, através do pacto que marca a saída do Estado de natureza. Rousseau introduz o termo de Alienação para indicar a cláusula fundamental do contrato social que consiste na "Alienação total de cada associado com todos os seus direitos a toda comunidade", de modo que "cada um, unindo-se a todos, não obedeça, todavia, senão a si mesmo e fique tão livre quanto o era antes" (Contrato Social, I, 6). A Alienação se apresenta, portanto, como o ato de cessão positiva que institui a vontade geral.

Hegel rejeita a teoria contratualista de formação do Estado e da Alienação como relação recíproca de cessão e troca. O argumento mais substancial é o fato de que para ele o sujeito da história não são os indivíduos mas é o espírito absoluto ou autoconsciência; a multiplicidade e a alteridade (alter) aparecem como momentos derivados e negativos em relação à unidade do espírito (e de seus titulares: o espírito do povo, o Estado). 

Praticamente Hegel aplica no campo histórico-social o núcleo conceituai próprio da teologia neoplatônica, isto é, o Uno que se divide e se multiplica num processo necessário de Alienação estranhamento (respectivamente: Entäusserung/Veräusserung e Entfremdung). A fenomenologia do espírito é inteiramente construída sobre a demonstração do necessário processo da Alienação-estranhamento do espírito, através do encadear-se das figuras históricas, e da necessária superação do ser-outro e do estranhamento na totalidade do devir e na unidade do absoluto.

O termo final é o saber absoluto como consciência de que o objeto é produzido pela autoconsciência e nela se resolve. Por isto, diz Hegel, a Alienação da autoconsciência "tem sentido não somente negativo mas também positivo" enquanto necessário processo de auto-afirmação pela cisão e pela produção das formas da alteridade histórico-objetiva. Na perspectiva desta elaboração lógico-ontológica, Hegel desenvolve, também, uma análise de grande eficácia do mundo moderno vendo-o como "espírito que se estranhou". O termo de referência é a idealização (presente também em Rousseau) da unidade de indivíduo e comunidade na. O mundo moderno é o rompimento desta unidade, por causa especialmente da riqueza que destrói a universalidade do Estado e faz com que a realidade social, ao invés de ser realização, apareça à consciência como "inversão" e "perda da essência".

São estas evoluções analíticas que Marx tem em consideração nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 para afirmar que .na Fenomenologia de Hegel estão contidos, embora numa forma idealística e mistificada, "todos os elementos de crítica". "O importante na Fenomenologia hegeliana e no seu resultado final — a dialética da negatividade como princípio motor e gerador — é, portanto, que Hegel entende o autoproduzir-se do homem como um processo, o objetivar-se como um opor-se, como Alienação e supressão dessa Alienação; ele capta, então, a essência do trabalho..." (Terceiro manuscrito, XXIII).

Na história do trabalho, como objetividade alienada do ser do homem (enquanto estranhamento das forças essenciais da humanidade, estranhamento que se realizou sob o signo da propriedade privada), o jovem Marx encontra a chave interpretativa para reformular os resultados da economia política clássica em sentido antropológico. Hegel entendeu que a história é a auto-produção alienada que o homem faz de si no trabalho, mas entende o trabalho como atividade espiritual de um sujeito absoluto.

A crítica antiespeculativa de Feuerbach denunciou a negação idealista do sujeito e do predicado e repropôs vigorosamente o sujeito como ser natural, sensível e, portanto, a objetividade e a alteridade como dimensões positivas em linha de direito, rejeitando a confusão hegeliana entre objetivação e Alienação. Ele, porém, não entendeu a produtividade histórica de Alienação enquanto premissa necessária do seu superamento histórico no comunismo.

O superamento da Alienação gira em torno do eixo que é a abolição da propriedade privada e do trabalho estranhado. A Alienação do trabalho nos Manuscritos é analisada como: a) estranhamento do operário do produto do trabalho; b) estranhamento da atividade produtiva, que de primeira necessidade se tornou atividade coata; c) estranhamento da essência humana enquanto a objetivação do gênero humano está degradada em atividade instrumental em vista da mera existência particular; d) estranhamento dos homens entre si em relações de antagonismo e concorrência.

A partir da Ideologia alemã (1845-46), Marx, enquanto aprofunda a análise do estranhamento através de uma história da propriedade privada como divisão do trabalho, começa a caracterizar o comunismo filosófico e o seu conceito-chave: a Alienação da essência humana. De fato, Marx e Engels estão elaborando os conceitos fundamentais do materialismo histórico e aquela crítica da essência da economia política que se tornará teoria do mundo de produção capitalista, como estrutura baseada na produção da mais-valia. Daí a tese de alguns intérpretes que expõem a teoria da Alienação do jovem Marx como "pré-marxista" (L. Althusser).

A questão é muito controvertida, porque:

a) se é verdade que no Capital não se encontra mais uma referência consistente à Alienação é também verdade que partes inteiras, como a IV secção do primeiro livro, percorrem a história da indústria como crescente estranhamento dos trabalhadores em relação à concentração dos instrumentos de trabalho, saber e força combinada do trabalho num aparelho objetivo, a eles estranho e contraposto enquanto capital. Existe, em particular, continuidade entre o conceito juvenil de trabalho estranhado e o maduro de trabalho abstrato;

b) é inegável a estreita correlação entre a análise do trabalho alienado e a análise do fetichismo e da reificação (cap. I do livro I e cap. 48 do livro III), isto é, do "caráter mistificatório que transforma as relações sociais, para as quais os elementos materiais servem de depositários na produção, em propriedade destas mesmas coisas (mercadoria) e, ainda, em forma mais acentuada, a própria relação de produção em uma coisa (dinheiro)";

c) são especialmente o termo e o conceito de Alienação que ocorrem muito frequentemente e em trechos decisivos dos cadernos dos Grundrisse, trabalhos preparatórios para a crítica da economia política elaborados por Marx nos anos de 1857-58;

d) mas é também verdade que, nas passagens de mais estreita correlação com a teoria juvenil, o Marx maduro só raramente retorna à elaboração conceituai de um sujeito (o trabalho ou o homem) que se aliena ou reifica, enquanto habitualmente fala de uma estrutura (o modo capitalista de produção) no interior da qual as relações sociais assumem necessariamente a aparência fetichista de coisas. Não deve ser, portanto, minimizada a deslocação epistemológica efetuada; de modo especial é de assinalar o fato de que a desalienação ou a reapropriação aparecem como efeitos de mudanças estruturais no processo de transição para um modo diferente (comunista) de produção.

III. O CONCEITO DE ALIENAÇÃO NA FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

O marxismo da Segunda Internacional, embora conhecendo em parte os escritos inéditos de Marx (o Nachlass foi publicado em pequena parte por F. Mehring), não atribui nenhuma importância ao conceito de Alienação, como também, não obstante a escrupulosa publicação dos Manuscritos em 1932 e dos Grundrisse em 1939-41, a Alienação substancialmente é um conceito estranho ao marxismo-leninismo da Terceira Internacional, porque ambos estão interessados nas tendências objetivas, na crise geral do capitalismo e na transferência das forças produtivas amadurecidas dentro da sociedade burguesa do socialismo entendido como estatização dos meios de produção.

A retomada da problemática conceituai referente ao nexo entre Alienação-fetichismo-reificação acontece especialmente à margem das correntes principais da tradição marxista, frequentemente por obra dos críticos desta tradição.

De modo particular o conceito de Alienação foi o centro da filosofia política que pretendeu reformular as categorias fundamentais hegeliano-marxistas referentes à crítica do neocapitalismo, de um lado, e do socialismo burocrático, do outro. A difusão da problemática da Alienação se situa entre os anos de 1950-60 quando foram descobertos os primeiros escritos de Lukács e de Korsch, e na altura em que os estudos de Marcuse e de Sartre já tinham muitos seguidores. Lukács (História e consciência de classe, 1923) vê o fenômeno da Alienação-reificação se estender da fábrica taylorista a todos os setores da sociedade — ao direito, à administração, à indústria cultural, etc. — constituindo setores autônomos, fragmentários, dirigidos pela racionalização baseada no cálculo e por uma eficiência que tinha a si mesma como fim.

Alienação, agora, não diz respeito somente ao. trabalho nas condições capitalistas, mas também ao mundo da ciência e da técnica formado no interior das relações burguesas de produção. Encontramos em Marcuse análoga extensão do conceito de Alienação para o mundo do trabalho e, especialmente para a civilização como um todo enquanto produto do princípio de prestação e da racionalidade instrumental.

Para esse autor, "racionalmente o sistema de trabalho deveria ser organizado mais com o objetivo de economizar tempo e espaço para o desenvolvimento individual além do mundo do trabalho, inevitavelmente repressivo" (Eros e civilização, 1955, IX). O conceito de Alienação desempenha também uma função essencial no existencialismo marxista de Sartre (Crítica da razão dialética, 1960) que insiste na necessária recaída — no quadro da penúria — da praxe individual e de grupo no mundo dos anônimos aparelhos reificados, o mundo da serialidade e do prático-inerte, no qual os fins se mudam necessariamente em anônima contrafinalidade e os homens se tornam objeto de processos que não controlam.

Foi frisado (G. Bedeschi) o fato de que estes autores privilegiam a conexão entre Hegel e Marx e acabam por confundir Alienação e objetivação, recaindo naquela posição idealista que o jovem Marx critica em Hegel. É oportuno, porém, ter em consideração o âmbito referencial específico, a respeito do qual eles usam os conceitos de Alienação e de reificação: a problematicidade das condições de emergência da consciência revolucionária no capitalismo desenvolvido (Lukács); o capitalismo maduro como "sistema" que tudo compreende e administra (Marcuse); a gênese, dentro do próprio processo revolucionário, de aparelhos burocráticos e repressivos (Sartre). Mais do que em Hegel, ficaria, desse modo, distinta a estrutura lógico-ontológica do conceito de Alienação e o seu uso parcialmente heurístico na revelação de aspectos histórico-sociais que constituem um problema para a filosofia política de origem mais ou menos marxista.

BIBLIOGRAFIA. - L. ASTÚCIA, Per Marx (1965), Editori Riuniti, Roma 1967;G. BEDESCHI. A. e feticismo nel pensiero di Marx. Laterza. Bari 1968; Id., "A.", Enciclopédia Einaudi. Turim 1977, vol. I, pp. 309-43; C. CAMPORESI, Il conceito di A. da Rousseau a Sartre, Sansoni. Firenze 1974; P. CHIODI,

Sartre e il marxismo, Feltrinelli, Milão 1965; I.mesários, La teoria Della. m Marx (1970)

Fonte: Dicionário de política I Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1 la ed., 1998. Vol. 1: 674 p. (total: 1.330 p.)

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