Democracia, direitos humanos e
cidadania são conceitos importantes que percorreram uma longa trajetória na
história política ocidental, sem nunca terem sido completamente abandonados,
seja como ideais, seja como objetos de análise ou como objetivos de ação
política. Durante a modernidade, esse modelo político popular e participativo
resistiu a poderosas forças centralizadoras e autoritárias que procuravam
evitar uma vida política mais intensa, coletiva, civil e pública. Sua evolução
esteve ligada à consolidação do capitalismo e ao acesso da burguesia ao poder.
No entanto, chegamos a um ponto do desenvolvimento das forças produtivas e das
relações políticas que parece oferecer desafios surpreendentes a esses
princípios de vida política, entre os quais a globalização e o neoliberalismo.
A globalização, à medida que
introduz relações econômicas e políticas semelhantes nos mais variados locais,
submetendo diferentes nações, grupos e regiões a uma ordem supranacional, impõe
a redefinição dos princípios que governam as sociedades. Instituições
internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Banco Mundial,
adquirem maiores poderes e abrangência; blocos regionais passam a ter objetivos
comuns e acordos políticos e sociais próprios, como a União Europeia.
Por outro lado, o neoliberalismo,
estabelecido pelo Consenso de Washington, à medida que valoriza o mercado
mundial em detrimento dos Estados nacionais, promove um enxugamento do aparelho
do Estado, que tende a reduzir seu papel na vida dos países, regiões e cidades.
A vida política se torna mais profissional, mais administrativa e planejada, o
que diminui o estímulo à participação dos cidadãos e à construção coletiva da
vida social mediada pelo Estado e por ele apoiada. Também entra em declínio a
proposta de um Estado de bem-estar social, no qual a defesa das condições
essenciais de vida dos cidadãos era tida como função essencial do Estado.
Consenso de Washington
Também
conhecida como neoliberalismo, essa expressão designa dez regras básicas que o
governo americano indicou para resolver a crise econômica dos países da América
Latina, com base num texto formulado pelo economista John Williamson em 1989.
Essas medidas do Consenso de Washington deveriam ser adotadas na negociação das
dívidas externas dos países latino-americanos e serviram de modelo para o FMI e
o Banco Mundial em todo o mundo.
Cada vez mais os governos se
burocratizam e a carreira política perde sua força ideológica mobilizadora. O
setor público cria rotinas, fluxos e gestões que, independentemente de seu
partidarismo, pouca influência têm no cenário em que se desenrola a ação
política. Em um mundo globalizado e integrado, cujas fronteiras entre o público
e o privado se desfazem, os conceitos de democracia e cidadania se tornam cada
vez mais híbridos e flexíveis, desfigurados pela adaptação aos contextos
diversos e antagônicos.
O fim da União Soviética, por sua
vez, pôs em xeque as propostas de uma democracia radical ou socialista,
permitindo o pleno desenvolvimento da democracia liberal, preocupada
principalmente com a defesa do mercado e do setor privado. Entra em decadência
a ideia de uma sociedade civil mediadora entre os interesses públicos e
privados, entre as necessidades individuais e coletivas. Um modelo único passa
a ser adotado por diversos países e a gerir os diversos âmbitos da ação
econômica e política, da política nacional à administração das pequenas
empresas e da vida individual. Todos esses diferentes níveis são suscetíveis à
mercantilização da vida social, promovida pela globalização e pelo
neoliberalismo.
5 Tolerância, diferenças e desigualdades
O mundo que surge no século XXI é
feito de países, regiões, populações distintas em relação a raça, etnia,
religião, nacionalidade, cultura, hábitos e crenças. Essas populações,
entretanto, nunca estiveram tão próximas, pois estão integradas por uma ordem
mundial homogeneizante que as torna interdependentes.
Os meios de comunicação, por sua
vez, aproximam essas regiões e suas populações, permitindo a troca de
informações e mensagens. A sociabilidade entre grupos tão díspares nem sempre
ocorre de forma amistosa ou tolerante. Há estranhamentos, xenofobias, racismos,
intolerâncias. Tornando ainda mais hostil as relações entre grupos distintos,
as migrações tendem a aumentar e a transferir populações de um território para
outro. Trata-se de trabalhadores que buscam trabalho, moradia ou asilo político,
porque são vítimas de desemprego, pobreza e perseguição em seus próprios
países.
Fatores de expulsão, como o
desemprego, a guerra, as rivalidades políticas, as disputas territoriais,
juntam-se a fatores de atração, como a proximidade geográfica, a semelhança de
língua, o desenvolvimento dos meios de comunicação e a homogeneização cultural
decorrente da globalização. O pensador indiano Homi Bhabba fala de um
pós-colonialismo que torna possível a convivência de populações distintas,
antes ligadas por laços coloniais, como os ingleses e os indianos, ou os ibéricos
e os latino-americanos.
Há entre elas, ao mesmo tempo, o
estranhamento e a afinidade que vêm de um passado histórico partilhado, em que
estão presentes os ressentimentos e as heranças culturais, as discriminações e
as memórias comuns. Para que essas polaridades sejam superadas, é preciso que
haja o exercício da tolerância, a descoberta do que o autor chama de
entrelugares, ou seja, espaços híbridos e intervalares, nos quais existe a
negociação de interesses, oportunidades, identidades entre os diferentes.
É no campo da atividade política
que essa negociação se efetiva e a heterogeneidade se firma ao respeitar as
diferenças. O reconhecimento dessas diferenças é um ponto importante da luta
política na atualidade, na qual já não se encontram blocos homogêneos, mas
díspares.
Os
trabalhadores desempregados, temporários, semiespecializados e não
especializados, homens e mulheres, os subempregados, os negros, as classes
inferiores: esses signos de fragmentação de classe e do consenso cultural
representam tanto a experiência histórica das divisões sociais contemporâneas
como uma estrutura de heterogeneidade sobre a qual se poderia elaborar uma
alternativa teórica e política (BHABBA, H. K. O local da cultura. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2005. p. 55).
A construção democrática,
portanto, exige uma atitude menos universalista, mais flexível e tolerante, na
qual se torne possível a realização daquilo que está presente em todos nós,
assim como a representação de nossas diferenças. Daí a democracia revestir-se
de princípios de tolerância, pluralismo e complexidade, em lugar de divisões
binárias, classistas ou polarizadas.
Cristina Costa