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Censura: Silêncio Ensurdecedor

Silêncio Ensurdecedor


Por Leandro Antonio de Almeida, doutorando em História pela USP e professor da UFRB

Prezada censura e amigos, é com prazer que pego nesta caneta, a fim de lhe cumprimentar a suas pessoa (sic), que esta ao chegar em suas mãos esteje (sic) com saúde e felicidades.” Assim começa uma carta reproduzida pelo historiador Carlos Fico, datada de 23 de setembro de 1974. Foi escrita por uma mulher doente que, a pedido de 50 mães, remetia um “apelo à censura, em nome de Deus,” para esta “dar uma ordem para as TV, aonde estiver com bandalheiras, falta de moral, falta de respeito, em plenas câmeras de TV, nos programas”. Em períodos de fechamento político, pedidos como esse ecoam fortemente ao legitimar a legislação que restringe a veiculação de conteúdos.

Em todo o período republicano brasileiro a censura foi legalmente exercida. Apesar de a Constituição de 1891 garantir a liberdade de expressão, desde o início do século XX cabia à polícia exercer a censura prévia nos teatros e cinemas. Por outro lado, em 1923 uma lei de imprensa foi promulgada pelo senador Adolfo Gordo e sancionada pelo presidente Arthur Bernardes (1922-1926), que dela se valeu para conter os opositores ao estado de sítio do seu instável governo, marcado por revoltas de militares de baixa patente, como a Coluna Prestes.

Essa lei também previa uma censura moral punitiva aos livros, que foi usada por uma instituição católica denominada Liga da Moralidade para denunciar à Justiça um romance de sucesso, Mademoiselle Cinema, de Benjamin Costallat. Já nas livrarias, o livro foi apreendido pela polícia porque continha cenas de sexo, amores fugazes, adultério e consumo de -cocaína. Mas seu autor foi absolvido porque o juiz comprou a tese “educacional” do prefácio: “A menina, educada sob certos costumes da época, nunca poderá ser mãe e esposa. Ficam-lhe vedadas as mais puras e as melhores alegrias da vida”.

Depois do golpe em 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, a censura foi reorganizada. Inicialmente, algumas leis foram promulgadas com a nova Constituição, em 1934, mas vigoraram por pouco tempo. Após sete anos na Presidência, a tentativa de um golpe comunista organizado por Luiz Carlos Prestes, em 1935, criou o pretexto para fechamento do País através de uma Lei de Segurança Nacional. Em 1937 foi implantado o Estado Novo.

A concentração do poder exigiu do governo autoritário uma maior aproximação com as massas, por meio de propaganda ostensiva, acompanhada da centralização da censura prévia de apresentações, irradiações e impressos, -retirando-a da órbita da polícia.
A dupla tarefa ficou sob a responsabilidade do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em dezembro de 1939 e subordinado diretamente ao presidente. A censura do DIP atuou para depurar os aspectos malandros e boêmios, contrários aos valores de trabalho e nacionalidade promovidos pelo regime, das canções veiculadas pelo rádio, mídia que se tornou popular a partir dos anos 30.

O exemplo mais conhecido foi a alteração da letra de O Bonde São Januário, composta por Wilson Batista e Ataulfo Alves: no lugar de “O bonde São Januário/ Leva mais um sócio otário/ Só eu que não vou trabalhar”, os censores liberaram “Leva mais um operário/ Sou eu quem vou trabalhar”. Na mesma época, jornais e jornalistas necessitavam de registro cedido pelo governo e tiveram de se submeter à censura prévia, sob pena de sofrer intervenção.

Além disso, edições inteiras de livros foram apreendidas nas livrarias de todo o Brasil, tanto pelo conteúdo considerado comunista, como os livros de Jorge Amado, quanto pela imoralidade, a exemplo do romance de um escritor hoje desconhecido, João de Minas, intitulado A Mulher Carioca aos 22 Anos.

A censura prévia manteve-se após a democratização, em 1945, sendo regulamentada no ano seguinte, para atuar no teatro, cinema e demais apresentações, através do Serviço de Censura e Diversões Públicas (SCDP), ligado à Polícia Federal. O regulamento e o órgão serviram de base para a censura nas décadas seguintes, mas foram reestruturados pelos militares após 1968.
O mundo pós-1945 presenciou a polarização em torno de duas superpotências militares, os Estados Unidos e a União Soviética, rivalizando capitalismo e comunismo numa Guerra Fria cujo palco era todo o globo. No Brasil, a perspectiva de justiça social avançava nos anos 1950 e 1960, inspirando a criação de movimentos sociais como as Ligas Camponesas do Nordeste e os movimentos de cultura popular ou o fortalecimento do movimento estudantil e dos sindicatos.

A perspectiva comunista encontrava simpatizantes no Congresso, na burocracia e mesmo no Exército. O próprio presidente João Goulart, que assumiu o governo em 1961, foi considerado comunista pelos mais conservadores por encampar reformas de base que atendiam a essas reivindicações.

Junto ao temor de um levante de esquerda, como o que ocorreu em Cuba a partir de 1959, tais movimentações e propostas levaram militares, no fim de março de 1964, a executar um golpe militar no Brasil, com franco apoio de parte conservadora da população civil e do governo dos Estados Unidos, que deu suporte a golpes semelhantes na América Latina. A partir daí, implantou-se o regime militar e, em 1967, promulgou-se uma nova Constituição, baseada na doutrina da Segurança Nacional. A mais violenta reação às oposições ocorreu entre 1968 e 1974, com a suspensão de direitos civis e políticos (AI-5), exílio, aumento de prisões, tortura e mortes.

A repressão ficou a cargo de instituições como o Serviço Nacional de Informações (SNI), centrado na espionagem; a polícia política, via Exército, pelo DOI-Codi, e via Polícia Militar, pelo Dops, voltados ao controle da “subversão”; e a Comissão Geral de Investigações (CGI), responsável pelo difícil combate à corrupção.

O braço ideológico do governo militar, diferentemente do DIP nos anos 30, foi fragmentado na Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), que fazia propaganda exaltando o governo; na censura política, entre 1968 e 1978, feita por censores nas redações e contatos das autoridades com os donos dos jornais; e na duradoura censura moral, a cargo da -Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP).

Às vésperas do AI-5, a Lei 5.536, de 1968, deu novas cores à censura teatral e cinematográfica, incorporando a televisiva, além de criar o Conselho Superior de Censura, operacionalizado apenas em 1978. Em 1970, o Decreto 1.077 passou a exigir a verificação prévia do conteúdo moral das publicações nacionais e estrangeiras antes de sua divulgação, temendo a degeneração da família pela pornografia, associada à difusão do comunismo soviético. Por causa volume de obras editadas no País, na prática a interdição operava a partir de denúncias, cujo teor replicava a avaliação dos censores em relação a obras literárias, de cunho político ou não, ou abertamente eróticas, como as publicadas por Cassandra Rios e Adelaide Carraro.

Daí o conteúdo revelador de algumas cartas enviadas à DCDP. Não por acaso, o período de maior incidência das cartas e da atuação da censura moral de filmes, peças teatrais e livros coincide com a abertura do regime, entre 1975 e 1981. A continuidade do discurso que associava a pornografia ao comunismo, no senso comum das classes médias urbanas, contribuiu para legitimar a vida longa da “prezada censura”.

A censura foi abolida pela Constituição de 1988 e, com ela, a DCDP foi desmantelada. De 1990 em diante, a política brasileira se democratizou e o comunismo deixou de representar uma ameaça real ao capitalismo triunfante.
Para arrepio dos moralistas à moda antiga, a partir dai corpos quase nus conformados a um rígido padrão de beleza, aludindo ao ato sexual, são veiculados cada vez mais abertamente nas mídias de massa, com o objetivo de vender mercadorias ou cativar atenção do público. Para desgosto dos mais libertários, o fim da censura não significou necessariamente uma liberação da representação dos corpos, mas sua prisão nas malhas anônimas e difusas de outra interdição. •

Fonte: CartanaEscola - CartaCapital

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